I
A minha vida começou a mudar quando cheguei a Nova Iorque. Naquele tempo, e principalmente na zona Sul de Manhattan, tudo era diferente. Parecia outro planeta, outra dimensão. Não estava habituado àquele cenário que só conhecia de ver na televisão. Eu tinha 17 anos quando fui viver para um bairro chamado The Bowery, mais precisamente na Houston Street. Os meus pais foram obrigados a mudar-se para lá por questões de conveniência que na altura não entendi. Isso também pouco interesse tem para o que vos pretendo contar. A história que aqui recordo não terá muitas reflexões intelectuais, metáforas, essas coisas literárias que de nada servem e que, por vezes, afastam os leitores dos textos. Terá uma ou outra peripécia, alguma exposição honesta de sentimentos e uma rapariga. Sobretudo isso, uma rapariga. Chamava-se Sheena, e o que vivemos foi tão brutal e intenso que sobre isso nada contarei. Todos nós sabemos que há coisas que não se confessam, e ponto final. Também porque o mais curioso é o que existiu antes dessa vivência, algo que quase acabou comigo: o primeiro contacto, o primeiro espanto, a estranheza daquele ser que abalou a minha vida, a nova pessoa em que aos poucos me tornei. O resto foi pura decadência, vícios, desilusões, demência. Contudo, e para começar, há que recuar cerca de 50 anos.
II
Recordo: estou à janela do meu quarto. A vista é curta, uma vez que o prédio da frente está a poucos metros de distância do meu. Nada me parece digno de registo. A sujidade do edifício e a sua idade avançada não podem embelezar a minha descrição. Dois ou três vizinhos que passam os dias a gritar, alguma violência doméstica, uma velha que vive a tirar pulgas e carraças ao Joey, o cão com mais peladas à face da terra, uma vizinha com ataques de pânico quando a noite é de lua cheia e pouco mais. Tudo é desinteressante e sem história. Como a minha vida, aliás, nesses primeiros dias nova iorquinos.
Eu era um rapaz normal, atinado o suficiente para não ser mais um entrave na longa lista de problemas que os meus pais tinham no seu dia-a-dia. Era tempo de férias, e o verão convidava ao uso de pouca roupa, daí que estava apenas de boxers quando a vi pela primeira vez. Tinha acabado de acordar com o ruído de mudanças. Iria ter novos vizinhos. Abri a janela do meu quarto e pensei que o andar desocupado do prédio da frente iria ser habitado por mais alguma estranha família alienígena. E, de certo modo, não errei o palpite. Pai, mãe e filha. O cabelo dela era verde!
III
Ela acenou-me da janela do seu quarto. Eu pasmei, extasiado. Foi o nosso primeiro contacto. Ela estava vestida com um casaco de cabedal negro, cheio de pins e badges.
A t-shirt meio rasgada à altura do peito deixou-me nervoso, a suar. A pele era tão branca… Ao ver-me em tronco nu e de boxers, sorriu e deixou sair um «oh, nice!» num tom suficientemente alto para ainda hoje ter esse som bem presente nos meus ouvidos. Foram as suas primeiras palavras. Durante alguns dias fomos falando de janela para janela, quase sempre por volta das quatro da tarde, quando ela acordava com a cara de sono mais linda que alguma vez vira em toda a minha vida.
– Hi, beauty! Como é? Vai ser hoje?
– Acho que não, hoje não vou poder – dizia, cabisbaixo. Inventava sempre uma qualquer desculpa para não aceitar os convites dela. Tinha medo de pisar terrenos que sabia serem movediços. Sheena saía quase todas as noites e frequentava vários clubes de rock da Bowery, bebia até quase não aguentar e fazia outros estragos equivalentes… Era uma rapariga encantadora, mas parecia pertencer a um outro mundo que não o meu. A sua beleza afligia-me, sempre me perturbou. Vislumbrava nela uma ponta de tragédia que nunca soube traduzir por palavras. Foi nessa altura que comecei a amá-la desesperadamente.
IV
Comecei a ouvir as músicas que ela ouvia, a tentar vestir-me da mesma maneira que ela, a ter uma atitude nova, radical. Vendi a um primo mais novo a minha prancha de surf, tão adorada até então. Já não me revia nela, percebem? Consegui comprar um blusão de cabedal em segunda mão e vários pins de grupos que faziam a banda sonora da nossa crescente paixão: Ramones, Iggy Pop & The Stooges, Richard Hell & The Voidoids… Vivíamos um para o outro, alucinados, crentes de que aqueles momentos iriam mudar as nossas vidas. Houve um dia em que fizemos um juramento de sangue. Foi doloroso, mas foi bom. Soube a eternidade.
Alguns meses depois de nos conhecermos eu já saía à noite, já fumava, já bebia até perder o sentido do que fazia e o meu cabelo assemelhava-se a uma bola de picos. Fui expulso da escola por desobediência ao diretor e por injúrias à sua mãe. Passei a ser o problema mais gritante da vida dos meus pais.
V
Aquele mês de janeiro estava a ser gélido. Não havia memória, nas últimas décadas, de um inverno tão rigoroso em Nova Iorque. Por força das poucas roupas que usávamos (sempre e apenas Converse, ganga rasgada nos joelhos e bastante imunda, t-shirt e blusão de cabedal), Sheena adoeceu e ficou cerca de um mês no hospital, com uma forte pneumonia. Quando voltou para casa, ainda em convalescença, passei a fazer-lhe companhia, assim que os pais dela saíam, logo pela manhã. Foi num desses dias que levámos o nosso amor até ao fim. Demoradamente, docemente, como se estivéssemos a viver em slow motion, e a janela do seu quarto, que estava permanentemente aberta, fechou-se por mais de uma hora. Foi aí que decidimos fugir, mesmo sem sabermos bem para onde. Fugir, largar uma vida que parecia não nos pertencer, mas que, ainda assim, íamos tentando viver.
VI
Ainda estivemos algumas semanas a ganhar coragem. Precisávamos de algum tempo para preparar as coisas. A ânsia de partir consumia-nos. Queríamos uma vida nossa, uma vida nova, na nossa nova cidade. Para quê sair de Nova Iorque, se «well New York City really has it all, oh yeah, oh yeah». Até que marcámos uma noite para fugirmos. Ainda me lembro de ter chorado, minutos antes de partir, frente ao espelho do armário do meu quarto. Aproximei-me da secretária e peguei num pedaço de papel. Deixei um bilhete escrito pedindo desculpa por tudo. Os meus pais nunca me perdoaram. Não os censuro por isso. Imagino o que terão sentido, a vergonha de mais um incómodo causado por mim, quando contaram à polícia o que tinha acontecido. Contudo, há urgências na vida que não controlamos racionalmente. O sinal para fugirmos deu-o Sheena, já de madrugada, ao acender e apagar quatro vezes a luz do seu quarto. Saí de casa em silêncio absoluto. Só o barulho do bater do meu coração se fazia ouvir estrondosamente dentro da minha cabeça, dentro de todo o meu corpo. Esperei, reticente, alguns segundos à porta do prédio até que Sheena chegasse. Chegou e, num tom de voz que transparecia algum receio e muita confiança, disparou: «Hey, ho, let’s go.»
VII
O que se passou nas semanas seguintes foi um desenrolar de aventuras, loucura, paixão e acontecimentos trágicos. Já disse que não me disponho a revelar os pormenores da história que eu e Sheena vivemos nesse tempo. Sobre isso não escreverei uma única linha. A dor da memória é tão intensa, que nunca me refiz do acontecido. Por vezes apetecia-me partilhar tudo aquilo que aconteceu entre nós, mas nunca consegui fazê-lo. Não consigo. Não consigo, e não vai ser agora que o vou fazer. Acho que nunca o conseguirei.
Vacilei a certa altura da nossa vida em comum. Recuei nas intenções que partilhávamos. Tive medo. Sheena não. Sempre a percebi. Com ela era sempre até ao limite, sempre até ao fim. Não era o meu amor por ela que definhava. Era ela, e só eu sei bem o que passei. She just couldn’t stay, she had to break away. E assim foi. Um dia partiu para sempre, e eu fiquei.
Fim
«Sheena Is A Punk Rocker»
Well the kids are all hopped up and ready to go
They’re ready to go now they got their surfboards
And they’re going to the discotheque Au Go Go
But she just couldn’t stay she had to break away
Well New York City really has it all, oh yeah, oh yeah
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker now
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker now
Well she’s a punk punk, a punk rocker
Punk punk a punk rocker
Punk punk a punk rocker
Punk punk a punk rocker
Well the kids are all hopped up and ready to go
They’re ready to go now they got their surfboards
And they’re going to the discotheque Au Go Go
But she just couldn’t stay she had to break away
Well New York City really has it all, oh yeah, oh yeah
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker now
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker now
Well she’s a punk punk, a punk rocker
Punk punk a punk rocker
Punk punk a punk rocker
Punk punk a punk rocker
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker now
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker now
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker now