Mais do que falar do mais que discutido primeiro disco dos Black Sabbath, este artigo é um breve relato sobre o que havia antes da edição do mesmo. Muitos pequenos factos e histórias ficam sem menção. Não há menção à breve passagem de Tony Iommi nos Jethro Tull e de como essa efémera ligação foi um abrir de olhos de como é que uma banda profissional trabalha. Não há menção do quão verdadeiramente humilde (leia-se pobre) era Ozzy Osbourne ao ponto de este aparecer descalço num dos primeiros ensaios da banda (que fez uma «vaquinha», não conseguindo angariar mais do que dinheiro para comprar umas sandálias baratas). Tão pouco há menção que Geezer Butler estava a estudar para ser contabilista, tornando-o responsável pelo aspecto financeiro e contabilístico da banda. Este artigo é uma viagem no tempo. É uma viagem que começa antes do ano de…
Mil novecentos e setenta. O sonho hippie havia terminado um pouco por todo o mundo. Nos Estados Unidos, a Paz e Amor de Woodstock tinham sido esfaqueados por um membro dos Hell’s Angels durante o concerto dos Rolling Stones no amaldiçoado festival de Altamont e Alice Cooper esfrangalhava galinhas ao vivo ao tocar exactamente antes do primeiro concerto de John Lennon sem os seus Beatles. No Reino Unido, o sonho hippie havia enlouquecido juntamente com Syd Barrett que via os seus Pink Floyd transformar o som da banda em composições cósmicas de vinte minutos, ao passo que as principais bandas dos anos 60 se desmembravam ou eram levadas a complexos, intrínsecos e algo aborrecidos devaneios musicais conhecidos como rock progressivo.
A contracultura tornava-se mais agressiva e surgem nomes como The Stooges, MC5, Hawkwind, Pink Fairies ou Edgar Broughton Band. Bandas estas que tomavam atitudes mais próximas de um activismo de intervenção anarco-punk do que de um pacifismo inocente e inócuo. Dito de um modo mais simples, os anos 70 avizinhavam-se como uma década mais dura e brusca. É neste contexto que surge um novo som de Inglaterra.
Em Inglaterra, a capital era descrita como Swinging London. Tudo era suave e, apesar de haver uma viragem para explorar novos sons e estilos de vida, a noção de estética europeia continuava a dominar o spirit of the age londrino. Mas, do mesmo modo como o sonho hippie era possível numa descontraída e solarenga California e o mesmo era quase inconcebível numa frenética e invernosa Nova Iorque (uns Jefferson Airplane tomariam vôos diferentes se fossem da Costa Leste e uns Velvet Underground não retratariam o dia a dia de um modo tão negro se fossem da Costa Oeste), no Reino Unido, pode-se argumentar uma quase semelhante analogia geográfica.
Uma coisa é Londres, capital centralista de um Império que terminava relutante e a contragosto. Outra é o resto de um país. Maioritariamente operário, o Reino Unido vivia ainda na sombra do pós guerra e de um sistema de classes repressivo. Sistema este que rotulava pessoas à nascença, não deixando muitas chances de fugir ao ambiente em que se tinha vindo ao mundo. A contracultura intelectualizada da capital não era de tão fácil acesso no resto do país. Até os Beatles atingiram o seu pico de criatividade e inovação após saírem da sua cidade natal, a portuária Liverpool. O que nos leva até Birmingham, situada nas Midlands.
Afastados de Londres, quatro jovens adultos cozinhavam a sua própria poção sónica. Poção esta que mudou o mundo da música como era conhecido até então e continua actual e fascinante. Esses quatro jovens davam pelo nome de John ‘Ozzy’ Osbourne (vocalista), Anthony Frank Iommi (guitarrista), Terence ‘Geezer’ Butler (baixista) e William Ward (baterista. Há 45 anos, numa sexta feira 13 como a de hoje, sai o seu primeiro disco simplesmente intitulado com o nome da banda que tinham juntos.

As origens deste quarteto são traçadas a Aston em Birmingham. Se ainda hoje é uma área considerada a evitar, já na altura era vista como uma zona problemática onde prosperidade não abundava. Fortemente caracterizada como uma cidade industrial, Birmingham não partilhava o glamour de Londres. Tony Iommi refere que, se não fosse a música, as perspectivas profissionais passavam por trabalho fabril, delinquência, crime, encarceramento ou morte. É na primeira destas actividades que o guitarrista perde a ponta de dois dedos num acidente laboral no último dia de trabalho numa fábrica a cortar uma chapa metálica. Já Ozzy Osbourne trabalhou num matadouro. É igualmente conhecido o facto do vocalista ter iniciado uma breve carreira no mundo do crime embora sem grande sucesso. Ao ser apanhado num furto, o jovem Ozzy vê-se encarcerado durante algumas semanas (local onde fez as suas icónicas tatuagens nos dedos e joelhos). Música era, de facto, a escapatória possível de um futuro que se previa depressivo, deprimente, sombrio e cinzento. O que não deixa de ser curioso pois são estes os adjectivos mais ligados à sonoridade que estes quatro indivíduos criaram.
No ínicio de 1968, Tony Iommi tocava com Bill Ward numa banda chamada Mythology. Fortemente influenciados por blues e jazz, o som dos Mythology pode ser comparado a outras bandas do British Blues como Ten Years After, Fleetwood Mac (os verdadeiros com Peter Green) ou Alexis Korner Blues Incorporated. Com algum êxito local, a banda tinha já um pequeno culto de seguidores nas Midlands. No entanto, no seguimento de uma rusga policial onde são encontrados vestígios de cannabis no seu local de ensaios, acontece o fim dos Mythology. Ganhando fama de consumidores de drogas, os Mythology começaram a ter problemas em arranjar concertos e terminam em meados de 1968.
É nesta altura que Tony Iommi e Bill Ward respondem a um anúncio numa loja que dizia: «Ozzy Zig Needs Gig – has own PA». Apesar de Tony Iommi ter conhecido um Ozzy nos tempos de escola, de quem não só não gostava como atormentava, é quando respondem ao anúncio que a verdadeira mitologia acontece. Tendo tocado numa banda com Geezer Butler chamada Rare Breed, Ozzy Osbourne tinha o muito importante material próprio que muitos não tinham. Um sistema de PA próprio. Enterrado o machado de guerra entre os antigos colegas de escola, inicia-se aqui a história dos Sab Four.

Com o nome Polka Tulk Blues Band, posteriormente encurtado para Polka Tulk, os quatro jovens de Aston contavam também com um segundo guitarrista e um saxofonista. Após dois concertos, o sexteto é reduzido a quarteto e o nome é alterado para Earth. Nome este que não durou muito pois, ao chegarem a um concerto, descobrem que foram contratados por engano. Havia já outra banda com o mesmo nome. Altura de mudar de novo o nome da banda.
Por esta altura, os ainda Earth começavam a perceber uma coisa. Após observarem uma fila de pessoas que compravam bilhetes para um filme de terror com Boris Karloff, os membros da banda opinavam sobre como é estranho as pessoas gostarem de se sentir assustadas e pagarem por isso. Portanto, porque não fazer música «para meter medo»? Para tal, debruçam-se em temas como o oculto para criar imagens oriundas das trevas. É neste momento que é encontrado o foco principal que vai destacar o quarteto de Aston das outras demais bandas. E, como procuravam um novo nome para a banda, decidiram utilizar o nome do filme que os levou a este obscuro e sinistro trajecto. O nome do filme em questão? Black Sabbath (Mario Bava, 1963).

Pode-se afirmar que o timing de tal escolha temática foi perfeito. Depois de paz, amor e viagens cósmicas, aparece um interesse no esotérico e no seu lado mais negro e sobrenatural. No Reino Unido, os Black Widow simulavam rituais e sacrifícios nos seus concertos. Nos Estados Unidos, os Coven editavam Witchcraft Destroys Minds And Reaps Souls, álbum que começava com uma música chamada «Black Sabbath». Para adensar a coincidência, os Coven tinham um baixista chamado Oz Osbourne. Havia também um interesse renovado no ocultista Aleister Crowley e a literatura de Dennis Wheatley era passada para o grande ecrã com a adaptação em 1968 do seu romance «The Devil Rides Out».
Porém, entre os Black Sabbath, apenas Geezer Butler demonstrou interesse no oculto. Interesse esse que acabou quando, alega ele, a aparição de uma figura à sua frente durante a noite fê-lo abandonar qualquer tipo de investigação futura em temas ligados às Artes Negras. Essa breve ligação serviu de inspiração para muitas das letras da banda. No entanto, e contrariamente do que muitos pensavam, a mensagem que queriam passar era a de aviso contra práticas satânicas ou ocultas. Inclusivamente, a banda usava cruzes ao peito para se protegerem de maus olhados e não como opção estética. Mais tarde alterariam letras para fugir a essa imagem que lhes era atribuída. Por exemplo, ‘War Pigs’ (‘Paranoid’, 1970) intitulava-se ‘Walpurgis’ e apresentava uma letra bem diferente do sobejamente conhecido hino anti-guerra.
A juntar a essa casual mas eficaz táctica de proto-marketing, houve também o uso de uma arma sónica chamada Tritone. É também conhecida pelo mais apelativo nome Diabolus In Musica. O Diabolus In Musica é uma combinação de notas que surge na Idade Média. Devido à sua construção, provoca uma dissonância considerada por muitos como pouco harmoniosa. Por causa desta atonalidade, o Diabolus In Musica chegou a ser banido pela Igreja (embora haja quem refute esta noção). Ainda hoje pode provocar reacções como se alguém estivesse prestes a invocar seres sobrenaturais mas, na verdade, o uso do Tritone é prática corrente no jazz desde o início do Século XX.
Esse acorde pode igualmente ser encontrado em gravações registadas pela banda em 1969 ainda com o nome Earth. Basta ouvir o tema proto free jazz metal intitulado «Thomas James» para percebermos que a experiência em medo tinha começado antes da alteração de nome da banda. Principalmente a partir da marca dos cinco minutos onde temos uma muito embrionária versão do que seria a música «Black Sabbath». Certo que tem ainda instrumentos de sopro, facto que confunde um pouco a literatura sobre quando ficaram reduzidos ao núcleo instrumental guitarra, baixo e bateria. Numa outra gravação já com o nome Black Sabbath, podemos escutar um tema denominado «When I Came Down» que denota um estilo semelhante a «Wicked World», lado B do primeiro single editado pela banda.
Tudo isto, no entanto, são apenas pequenos passos para o que é o primeiro disco da banda. Gravado em dois dias e precedido em Janeiro de 1970 pelo single «Evil Woman»/«Wicked World», Black Sabbath tinha tudo para deixar uma marca indelével na música.
Desde a capa de imagem algo difusa e saturada de grão, em que uma misteriosa figura feminina (cuja identidade continua desconhecida até aos dias de hoje) segura um gato preto com um edifício que tanto pode ser uma igreja em ruínas como uma mansão assombrada (na verdade, é um moinho de água), até ao momento em que se abre a capa e se revela uma cruz invertida (decisão da companhia discográfica Vertigo, feita sem o conhecimento da banda) com um sombrio texto que descreve imagens inquietantes. Ainda assim, o design não deixa antever o poder sónico contido no vinil em questão.
Ao deixar cair a agulha no disco, ouve-se uma forte chuva complementada por um sino distante que prenuncia um mau augúrio e, sem aviso, aquela descarga demoníaca de eléctrica como os trovões que preenchem ainda mais o som… Melhor nota de intenções do que a faixa «Black Sabbath» não há. Se era banda sonora de filmes de terror que queriam, aqui encontram-nas espalhadas em sete faixas.
Pesado, lento e distorcido, é-nos quase impossível quantificar o real impacto que tal música poderá ter tido num mundo ainda algo ligado aos valores dos anos 60. Certo que havia já exemplos de um ganhar de peso na música. Mas nenhuma o fez de um modo tão consistente, propositado e influente como os Black Sabbath. Como terá sido ouvir pela primeira vez aquela descarga de ritmo vagaroso e sem esperança? A verdade é que continua a ser pesado, lento e distorcido. É igualmente um retrato de uma cidade industrial depressiva, deprimente, sombria e cinzenta. Mas é tão bom que o resto, é como dizem, é uma história sobejamente conhecida!
Artigo de Carlos Ferreira
muito legal , sou fã do Sabbath desde anos 70 , tenho 58 anos !! muito legal o texto !!!