O meu gosto musical sempre foi da mais indecorosa promiscuidade: no meu MP3 o Fela Kuti bebe tranquilamente um copo com os Smiths, o Fausto joga matrecos com os De La Soul, e a Billie Holiday vai para a cama com os Minor Threat. Talvez por isso me fascine tanto o Tropicalismo, que nunca aceitou – como critério de gosto para a música popular brasileira – outra coisa que não a liberdade estética total.
Estávamos em 1967 e o Summer of Love no Brasil era vivido sob o signo da ditadura militar. No ar havia um ambiente de paranóia ideológica, vendo-se intenções políticas por detrás de cada gesto. A música popular – dividida entre o iê-iê-iê da Jovem Guarda de Roberto Carlos e a pós-Bossa Nova MPB de Chico Buarque e companhia- não era excepção. Certa MPB (Edu Lobo, Elis Regina, Geraldo Vandré…), dominante entre os circuitos estudantis da esquerda nacionalista, via na adesão da Jovem Guarda ao rock’n’roll uma intolerável cumplicidade com o regime. Chegou mesmo ao ridículo de organizar uma manifestação contra a guitarra eléctrica, “expoente máximo do imperialismo americano”. Os mais cínicos dirão que a motivação principal desta guerra era de outra ordem: com a ascensão do “rei” Roberto Carlos, as audiências da MPB estavam a descer…
É neste contexto que o bando tropicalista – de Caetano Veloso, Gilberto Gil e seus compinchas – entra em cena. Caetano e Gil provinham da MPB, tinham feito discos (Domingo, Louvação) que seguiam à risca a gramática bossa nova do seu mestre João Gilberto, mas estavam agora “freudianamente” empenhados em matar o pai (tal como Dylan só verdadeiramente se emancipara de Woody Guthrie quando electrificou as suas canções). Os baianos não se reviam de forma nenhuma no maniqueísmo estético e político da MPB. A sua paixão pelo rock’n’ roll em nada contradizia a sua inequívoca oposição a um regime político odioso e servil aos interesses dos Estados Unidos. Simplesmente amavam da mesma forma Jobim, os Beatles e Carmen Mirada, mandando para o diabo o patrulhamento de gostos então dominante, para previsível escândalo dos moralistas estéticos.
Quando em Outubro de 1967 Caetano e Gil se apresentaram no III Festival de Música Popular Brasileira, acompanhados por bandas de rock, foram vaiados pelos nacionalistas de esquerda que assistiram ao espectáculo (o paralelismo com o concerto de Dylan em 65 no Newport Folk Festival – no qual foi chamado de “Judas” pela audiência enfurecida pela sua “burguesa” e inesperada electrificação da folk – é total). Tudo naquelas duas canções provocava escândalo. “Domingo no Parque” de Gil era uma estranha salada de música afro-baiana, rock psicadélico (tocado pel’Os Mutantes) e arranjos sinfónicos avant-garde (assinados por Rogério Duprat, o “George Martin da Tropicália”). “Alegria, Alegria” de Caetano, também electrificada, surpreendia sobretudo pela frescura da letra, muito pop art, cheia de alusões à cultura de massas de então: “Brigitte Bardot”, “espaço-naves, guerrilhas”, e, talvez mais escandalosamente, “eu tomo uma coca-cola”. A esquerda sisuda poderia aguentar muita coisa mas assistir à contaminação semântica da canção popular brasileira pela funesta “água suja do imperialismo americano“ era, pura e simplesmente, demasiado. Com esta coreografia de movimentos – acção provocatória primeiro, reacção indignada depois – tinha acabado de nascer o Tropicalismo. O fermento encontrado na vanguarda artística brasileira (Cinema Novo de Glauber Rocha, Movimento Antropofágico de Oswald de Andrade, a arte plástica de Hélio Oiticica…) fez o resto.
Havia outra razão pela qual a esquerda ortodoxa desconfiava dos tropicalistas: as letras das suas canções não tinham um conteúdo abertamente revolucionário. O aspecto subversivo dos Tropicalistas não residia no conteúdo mas sim na forma, escandalosamente heterodoxa para os padrões da época: a música era experimental e promíscua; as letras eram não lineares, fragmentos soltos e inesperados em total contraste com as narrativas certinhas dos “bossanovistas”.
Mas foi no ano seguinte que tudo explodiu. Exceptuando o primeiro álbum de Gal Costa que só saiu em 69, todos os discos definidores do Tropicalismo são de 68. Em Janeiro Caetano lançou o primeiro LP tropicalista: o homónimo Caetano Veloso. A canção de abertura, “Tropicália”, deu nome ao movimento, e constitui talvez a concretização mais bem conseguida do seu ideário. Está lá tudo: a ode – e sátira – à modernidade (“sobre a cabeça os aviões/sob os meus pés os caminhões); a elegia ao excesso e ao mau gosto, aqui personificados na “Carmen Miranda-da-da-da”; a fusão de estilos e o experimentalismo dos arranjos. Ainda hoje esta canção soa fresca e arrojada.
No conturbado Maio de 1968 foi a vez de Gil lançar o seu álbum homónimo, captando os ares do tempo com a icónica “Pega a Voga, Cabeludo”. O flirt com a Pop anglófila era mais evidente do que no álbum de Caetano e a razão era simples: Gil teve o privilégio de ter os brilhantes Os Mutantes como banda de suporte. Na sua condição de adolescentes urbanos, estavam totalmente sintonizados com o rock psicadélico que se ouvia lá fora: a linha de baixo de “Coragem para suportar” foi descaradamente roubada a “Taxman” dos Beatles; “Questão de Ordem” é Gil a brincar ao Jimi Hendrix; “Luzia Luluza” é a balada psicadélica que os Beatles nunca gravaram.
No mês seguinte os paulistas lançaram o seu álbum de estreia – Os Mutantes-, obra-prima do psicadelismo admirada pelo próprio mundo anglófono (Cobain era um dos seus ilustres fãs). Se o ponto de chegada foi o mesmo do de Caetano e Gil – uma fusão “anything goes” entre rock psicadélico e música tradicional brasileira – o ponto de partida foi diametralmente oposto: a ortodoxia psicadélica. Para Rita Lee e os irmãos Baptista, os discos dos Beatles pós-Revolver eram dogmas sagrados; só com muita insistência de Gil e Caetano conseguiram abrir-se ao melting pot estético do Tropicalismo.
Entretanto, Caetano foi buscar Tom Zé a Salvador, trazendo-o para São Paulo- o epicentro do Tropicalismo. A forma como Tom Zé combinava o experimentalismo com a mais profunda ruralidade (o baiano crescera em Irará, remota localidade perdida no meio do sertão nordestino) enquadrava-se na perfeição no projecto tropicalista. Afinal de contas, o amor incondicional às contradições sempre fora a pedra de toque do movimento: regionalismo e espírito cosmopolita; o rural e o urbano; modernidade e tradição; o europeu e o africano; sofisticação e primarismo; o gosto mais refinado e o kitsch mais deplorável. Destas tensões nasceu Grande Liquidação, admirável álbum de estreia de Tom Zé que ficou esquecido até David Byrne o reeditar no início dos anos 90.
Em Julho de 1968 foi lançado o álbum colectivo Tropicália ou Panis et Circenses. Apesar da importância simbólica de um álbum manifesto que congrega num só objecto toda a trupe tropicalista (Caetano, Gil, Gal, Os Mutantes, Tom Zé e demais rapaziada), nem sequer é um dos discos mais bem conseguidos: tem orquestração a mais e electrificação a menos; e o facto de muitas das canções não serem originais torna-o um pouco o Yellow Submarine do Tropicalismo. Há contudo um pormenor que só engrandece este disco: a presença de Nara Leão cantando “Lindonéia”. Nara foi a primeira diva da Bossa Nova, e na sua elegância e sofisticação nada tinha a ver com o caos tropicalista, mas a sua cultura não sectária levou-a a endossar o movimento com esta canção.
Em Setembro de 1968 os tropicalistas subiram a parada. No III Festival Internacional da Canção, Caetano, de cabelos compridos e desgrenhados – vestido com uma roupa de plástico colorida, e ornamentado com fios eléctricos com tomadas nas pontas, correntes grossas e presas de animais –, apresentou, acompanhado pelas guitarras distorcidas de Os Mutantes, a experimentalista “É Proibido Proibir”, gritando no final “Deus está solto”, ao mesmo tempo que um norte-americano de dois metros de altura e aparência esquisita corria pelo palco soltando grunhidos. A esquerda ortodoxa que assistia boquiaberta ao insólito happening reagiu com a mais profunda indignação, vaiando, insultando e arremessando objectos, que fizeram Gil sangrar do joelho. Caetano, qual Jim Morrison da Bahia, respondeu com uma frase que ficou célebre: “Essa é a juventude que diz que quer tomar o poder? Se vocês forem em política como são em estética, estamos fritos.” O corolário é inquietante: o Tropicalismo, na irreverência libertária das suas propostas, amedrontava de um só golpe a esquerda e a direita.
Paradoxalmente, ou talvez não, a subversão comportamental dos Tropicalistas (os gestos provocadores, os cabelos compridos, a ambiguidade sexual, as drogas e as roupas exóticas) assustava mais o regime do que as canções de intervenção da MBP mais ortodoxa. Não deixa de ser significativo que muitos autores MPB – cujas letras apresentavam um conteúdo político explícito – nunca tenham sido beliscados pelo regime, enquanto Caetano e Gil foram logo presos em 1968 e mais tarde condenados ao exílio.
Com a prisão dos baianos, ficou facilitada a tarefa dos historiadores quanto à datação exacta da morte do Tropicalismo: 27 de Dezembro de 1968. O movimento propriamente dito durou então pouco mais de um ano mas os seus efeitos sobre a música popular brasileira prolongaram-se no tempo. Nem falo dos álbuns subsequentes daquela malta, que até meados dos anos 70 ainda estavam muito imbuídos da estética tropicalista (Caetano, por exemplo, só com Araçá Azul de 1973 fechou esse ciclo). Falo sobretudo de uma forma radicalmente diferente de olhar a indústria musical, muito menos segmentada do que outrora por nichos de todo o tipo. Quando artistas actuais como Rodrigo Amarante e Marcelo Camelo integram com naturalidade pop/rock com MPB, podem até nem pensar nisso mas agem como legítimos herdeiros do Tropicalismo. A Tropicália, ilha imaginária onde nada é impossível, permanece bem viva.