Há um momento da nossa vida em que acordamos para a música. Um caminho irrevogável, essa palavra que está tanto na moda nos dias que correm, de onde já não há retorno, de onde não queremos nunca mais regressar. Se nunca pensaram nisso, façam esse exercício. Que banda, que música, que instrumento é que vos acordou do torpor dos hits da rádio e vos fez ficar sedentos, viciados, incansáveis na busca pelo conhecimento sonoro?
Já pensaram? Óptimo. Escrevam sobre isso, que agora estamos a falar de mim. E a minha resposta é simples e imediata. Quem me conhece, apaixonada pelo indie, atenta ao alternativo, seguidora do britpop e de tudo o que nasceu depois mas com origem aí, nunca imaginaria que a banda que me fez acordar para esse maravilhoso e inesgotável mundo por explorar que é a música é… Metallica. Mais especificamente o Black Album, claro, esse enormíssimo disco de 1991, quando esta que vos escreve tinha apenas sete aninhos mal medidos.
Pois é. Menina de franja, com a estante cheia de britalhada e “alternativo”. Mas menina criada e musicalmente educada nos anos 90, no apogeu do metal, no nascimento do grunge. Os Metallica abriram-me portas para um admirável mundo novo.
Cruzei-me com o Black Album quase por acaso. Não foi logo em 1991 mas terá sido já com dez anos. Consumia música da forma que todas as crianças consomem: a rádio, os discos dos pais, as cassetes do irmão mais velho. Lá em casa dominava sobretudo o fado e havia um disco do António Variações (risquei-o eu de tanto o ouvir). E o meu irmão, pouco sensível às lides musicais, comprou, que me lembre, um disco a vida inteira: Guns n’ Roses. Aos dez anos ainda achava que os Resistência eram boa música (foi em 1994, relembro, antes que comece o gozo), ouvia bandas portuguesas como os GNR e os enormes Xutos e os one hit wonders que passavam na rádio. Não tínhamos leitor de CDs. Só cassetes gravadas ou os discos franceses que o meu tio emigrante da Suíça trazia quando vinha de visita. De vez em quando comprávamos um Now qualquer. E não sentia falta de mais.
Até que ouvi pela primeira vez Metallica. Foi através da irmã mais velha da minha melhor amiga da escola, em casa de quem passava todas as tardes, ainda a olhar para as bonecas com um misto de vontade de lhes pegar e de vergonha por já ser demasiado crescida. Em casa da minha amiga havia discos de coisas que eu nunca tinha ouvido falar. Os do pai dela: jazz, sobretudo, e bossa nova. Os da mãe, Zeca Afonso e afins, e Beatles. E os CDs da irmã: Metallica, Pink Floyd, Led Zeppelin, Velvet Underground, Radiohead, mais uma data de metaladas das quais já não me consigo lembrar, Pearl Jam, Nirvana e grunge afins.
Ela não nos deixava tocar nos discos dela. Toda vestida de preto, botas Doc e um cabelão que descia até ao rabo, abria-nos os olhos ao lado do namorado com quase dois metros, igualmente de preto, igualmente de botas Doc, igualmente de cabelo até ao rabo. Ameaçadora. Que não vos apanhe, senão… E saía. Mas nós não resistíamos. Claro que íamos ouvir. O estalinho da agulha do gira-discos era o maior dos frutos proibidos. A mãe dela sabia e alinhava connosco. Não estraguem nada e eu não conto. E lá nos perdíamos, horas, no meio dos discos e de tanta música por descobrir.

Devo ter ouvido muitas coisas antes do Black Album. Mas assim que começaram a soar os primeiros acordes da “Enter Sandman” percebi que a partir daquele momento nada ia ser como dantes. E depois a balada suave em “The Unforgiven” ou de “Nothing Else Matters”, que tentei sem sucesso aprender na guitarra, o poder das guitarras em “Wathever I May Roam”… tudo era enorme, tudo me esmagava. Aqueles solos! A bateria poderosa! E a voz, entre os berros e o sussurro! Afinal música era isto. O que é que eu tinha andado a fazer durante todo este tempo?
Explorei todos os discos anteriores. Acho que me arrepiei a primeira vez que ouvi a “Fade to Black” ou a “Master of Puppets”. Espantei-me com o cru que é “Kill ‘em All”, elegi durante muito tempo como meu preferido o Ride the Lightning. E aquela introdução na “One” do …and Justice for All. Chorei quando não me deixaram ir ao concerto em Alvalade. Esperei ansiosamente, mais dois anos, que lançassem um novo trabalho. E fiquei tão zangada com o Load que deitei o disco fora depois do ouvir a primeira vez – claro que com a mesada seguinte o fui comprar de novo. Sabia tudo sobre eles, da mesma forma que as adolescentes sabem tudo sobre os seus ídolos. Mas, em vez dos Backstreet Boys, eu adorava era os Metallica. E aprendi que a música é algo que um dia nos atinge com tanta força que não conseguimos contê-la no peito.
A partir daí abri as portas ao grunge e à britpop, aceitei tudo o que tinham para me mostrar, passei por todos os estilos e de todos retirei alguma coisa. Às vezes esqueço-me do meu primeiro amor, de tantas paixões novas que surgem todos os dias, de tantos álbuns, de tantas histórias, de tantas vidas. Mas quando regresso, quando me lembro, quando dos phones começam a soar as guitarras poderosas e o baixo da minha infância, é como voltar a casa. É o conforto dos clássicos. É o disco da minha vida e que definiu a minha vida. Porque a música, quando nos apaixonamos por ela, nunca mais a conseguimos largar.