Kevin Ayers é um dos meus mortos. Estranho sentimento de posse, sem dúvida, porém absolutamente verdadeiro. Tive por Ayers, enquanto vivo, uma imensa admiração, e depois do seu desaparecimento foi crescendo em mim o que já anteriormente era uma inequívoca certeza: o músico nascido em Herne Bay foi um dos mais fantásticos e importantes nomes do seu tempo, desde os primórdios dos Soft Machine, até à sua obra em nome próprio. Viveu uma vida algo excessiva, rendido aos prazeres do bom vinho e outros líquidos afins. Viveu como desejou, e terá seguramente sabido tirar da vida o melhor que ela tinha para lhe oferecer. Foi, talvez por isso, generoso para connosco. Deixou-nos grandes discos como Joy Of AToy, Shooting At The Moon, Bananamour, The Confessions Of Dr. Dream And Other Stories, Sweet Deceiver, Yes We Have No Mañanas ou The Unfairground, apenas para referir os mais emblemáticos. No entanto, a sua particular voz e o seu imenso talento como compositor e intérprete talvez se notabilizem ainda mais no terceiro disco a solo, saído em janeiro de 1972. Faz agora 43 anos, portanto. Chama-se Whatevershebringswesing (Harvest SHVL 800) e escreve-se exatamente assim, com as palavras todas coladas umas às outras. É uma verdadeira obra prima do psicadelismo tranquilo e sedutor de Kevin Ayers. Redescobrir esta lost gem dos anos 70 britânicos é uma tarefa imperativa, pelo que o pequeno contributo destas linhas talvez possa ser de algum interesse para aqueles que quiserem seguir este meu conselho.
Acompanhado por alguns dos membros dos insanos Gong, por Robert Wyatt, Mike Oldfield e outros excelentes músicos, Ayers reuniu um conjunto fabuloso de oito composições (apenas «Among Us» não é da sua lavra, mas de David Bedford, o teclista de serviço) para fazer Whatevershebringswesing. Nele não existe uma única canção abaixo da excelência! No entanto, há momentos particulares em alguns dos temas que são inesquecíveis, como o solo de baixo de Oldfield no início da canção-título do álbum, o arranjo orquestral de «There Is Loving / Among Us / There Is Loving» ou a misteriosa letra de «Song From The Bottom Of A Well», onde se pode ler «This is a song from the bottom of a well / There are things down here / I’ve got to try and tell». Nunca estas linhas de texto me saíram da cabeça, e a voz grave de Ayers dá a esses versos o devido encanto. Em Whatevershebringswesing há, como é natural nos discos de Kevin Ayers, canções verdadeiramente icónicas. Para além das já referidas, importa salientar «Stranger In A Blue Suede Shoes», aproximação perfeita aos primórdios do rock and roll, bem como a belíssima «Lullaby», tema instrumental que encerra o disco. Se em todo o album é fácil encontrar resquícios da crescente Canterbury Scene, este final é também evocativo do lirismo sonoro muito presente em todo o trabalho. «Margaret», «Oh My» e «Champagne Cowboy Blues» são as canções que ainda não havia aqui referido, mas que estão ao nível das restantes, de tão boas e fascinantes.
O charme de Kevin Ayers é omnipresente desde o início até ao fim do álbum, passe a redundância. Apesar de ser composto por canções bem diferentes entre si, há um forte sentido estético que as une umbilicalmente. Para além disso, a qualidade composicional e interpretativa é outro dos trunfos deste Whatevershebringswesing, pelo que se torna obrigatória uma audição em repeat, como tantas vezes fiz ao longo da minha vida, e faço ainda vezes sem conta. Ouvir este disco de Kevin Ayers continua a ser um prazer insuperável!
Uma última nota para a capa icónica do disco, que o torna mais fascinante enquanto objeto. Nela podemos encontrar um cesto de vime tombado, bastantes ovos espalhados no seu interior e também pelo chão. De dentro desses ovos vão saindo bebés, e numa visão mais alargada que podemos ter da capa e contracapa, percebemos que alguns estão já mais crescidos do que outros, todos pousando para a eternidade que Adrian Boot, o autor da pintura, lhes deu. Esta insólita imagem merece um apontamento de fina ironia na contracapa (coisa tão tipicamente britânica, como sabemos) onde se pode ler, a propósito de tão inusitado conjunto, a expressão «no eggsplanation».
* a edição em cd de Whatevershebringswesing de 2003 (EMI Records) apresenta, para além do álbum original, quarto faixas extra de grande qualidade. São elas «Stars», «Don’t Sing No More Sad Songs», «Fake Mexican Tourist Blues» e uma versão antiga de «Stranger In Blue Suede Shoes». O booklet de dezasseis páginas com texto de Mark Powell e várias fotos de Kevin Ayers tornam esta edição bastante interessante.