Imagino um convento, um mosteiro, um edifício qualquer desse género, já velho. Com as paredes manchadas de humidade e histórias, percorremos corredores, divisões, claustros, sempre num ritmo apressado, não rápido. Lá fora está aquele sol forte de Agosto, mas por onde passamos está fresco. Uma brisa vai cortando o calor, cheira a terra morna e ouvem-se os barulhos do sítio que nos rodeia. Passos, pedras que se vão soltando umas das outras e uma respiração. Não é a nossa mas quase podia ser.
De olhos fechados deitado no chão do meu quarto oiço Cabeça, o novo álbum de Rui Carvalho, mais conhecido como Filho da Mãe. De olhos fechados deitado no chão do meu quarto deixo-me levar pela música que me empurra para aquele sítio que descrevi.
Chegamos a uma cave. Cortada pelas faixas de luz que entram pelos gradeamentos, as pedras que decoram o chão fazem ecoar os nossos passos. O seu som espalha-se pelo ar, choca contra as paredes e regressa, num emaranhado misterioso de sons que saíram de nós, foram, vieram, e deixamos de os conhecer. Não deixam de saber bem.
Já é de madrugada quase, mas continuo no mesmo sítio: de phones nos ouvidos vou mergulhando cada vez mais no mundo especial que o Rui nos oferece. A luz que pisca da aparelhagem quase que dança ao som dos acordes que desfilam só para mim. É quase hipnótico ouvir estas composições alucinantes, tal e qual riscos furiosos numa carta de más notícias. Só ganhamos norte quando o pulsar da madeira se faz ouvir. Quando ele bate na guitarra. Quando o novelo sonoro que nos envolve a cabeça explode e desfaz-se.
O dia está a chegar ao fim, já se começa a sentir o granito a ficar mais brando, mais fresco. Debulhando uma parede com a mão que por ela desliza, vamos subindo a torre mais alta que daquele monte de pedras e saudade nasce. Os pés pelos degraus ora saltitam, ora se arrastam; estão presos ao ritmo de um coração que bate ao som de uma história, de uma sensação, de uma ideia -Rápido, rápido, devagar, rápido, devagar, devagar- Chegamos ao topo do caracol e abrimos a porta de madeira seca e ferrolhos queixinhas. Solta-se o trinco e uma luz cor-de-laranja explode na penumbra da escadaria. Sente-se o resto de quente que ainda sobrou ao dia a tocar nas pernas, nos braços. Abrimos a porta e estamos no topo deste tempo que passou.
Os meus olhos vão-se contorcendo com cada dedilhar, com cada riff, com cada prego. Toda a minha cara dança ao de leve com o sentimento mais carregado, mais coeso que sai daquilo que oiço. “Um Bipolar Dois”, “Cerca de Abelhas”, “Sem Demónios”,… Nomes soltos que trazem com cada letra um pequeno mundo de sensações boas. Tudo o que se ouve é bom. Muito Bom. O ritmo explosivo, volátil, do passado deu lugar a uma emoção, uma sonoridade mais sólida, matura. Não temos só paixão mas amor também; deixam de explodir gargalhadas e sorrisos cheios aparecem mais vezes. Tudo está mais refinado. Tudo está mais adulto.
Ainda meios trôpegos pela luz gentil do dia que está a acabar, esfregamos os olhos, encostamos a porta atrás de nós e aproximamo-nos do parapeito que nos mantém presos a uma realidade anatómica. A um mundo de carne e osso que ambicionam ser mais que isso. Toda a nossa volta se estende um mar sedoso de trigo que forra este monte, acalma o pulso que quer fugir. No limite onde acaba a terra e começa o céu alguém desenhou ao comprido um rasto de luminosidade que se esvai entre uma escuridão que vai crescendo. Um duelo entre a claridade e a escuridão. Velocidades voltaicas e outras delicadas. Frio e Calor. Dia e noite.
Começa a nascer o dia do lado de lá do estore da minha janela.
A noite começa a tropeçar em força por cima das searas.
Estou a transpirar: o fio dos auscultadores vai se colando ao meu peito.
Começa a ficar fresco: com o escuro vêm os arrepios e as mãos frias.
Fecho os olhos, encadeado pela luz do despertador que começa a tocar.
Fecho os olhos para gravar no cérebro a beleza do pôr-do-sol que vi encenado à nossa frente.
De alma cheia fico, com o som maravilhoso que me rodeou. Que me fez sentir. Num molho de dualidades, onde a própria realidade e a imaginação se confundem, Cabeça puxa-nos para qualquer sito que queiramos. Seja onde for, estamos bem. Muito Bem.