Agrada-me a soturnidade de Abandoned Apartments, e esse talvez seja o seu maior trunfo. Todo o disco procura agarrar-nos por esse lado mais sombrio, mais taciturno, embora em cada uma das canções haja luz suficiente para não nos perdermos no labirinto que Jeremy Jay nos apresenta. O espaço em que se respira é algo fechado, sem chegar a ser claustrofóbico. Longe disso, até. Cada tema tem a dose certa de oxigénio sonoro para nos sentirmos vivos, e bem. Depois, há o estilo! Há esse apuro discreto de sons e formas que o compositor americano sabe tão bem criar. Há um certo olhar para o passado, e podemos facilmente recordar-nos de Tones On Tail, de Siouxsie and The Banshees, de influências do goth-pop britânico da década de 80 do século passado. Mas há também aquele engenho a que Jeremy sempre nos habituou, e que se revela em pequenas histórias de abandono ( a expressão em itálico surgiu-me sem pensar no título do disco, acreditem), numa certa renúncia ao mundo, indicações tímidas de desistência, e isso confere-lhe (ao músico e ao disco) um charme inquestionável. É sobre isto que Jeremy Jay nos fala. São esses os assuntos prementes do disco.
Jeremy Jay está no topo da sua mestria, o que faz de Abandoned Apartments um dos acontecimentos discográficos do ano. É sublime, tanto nas partes como na totalidade da sua construção. É minimalista nos meios que utiliza (bateria, guitarras, baixo e sintetizadores são notáveis na forma contida como se manifestam) e o trabalho das letras das canções é igualmente digno de registo. Não é fácil destacar um ou outro tema, tão uno e orgânico é o disco nas suas 10 canções tão equilibradamente calibradas. Mesmo assim arrisco “Sentimental Expressway”, a primeira, a que lança os dados sobre a mesa e nos informa imediatamente dos propósitos do álbum. É simples e descaradamente excelsa, na sua precisão de (quase) alta costura sonora. Segue-se “Covered In Ivy”, mais propícia a single de Abandoned Apartments do que qualquer outra. “Graveyard” e o seu romântico piano inicial lembra uma torch song à maneira das melhores do género. “The View From The Train Window” traz uma respiração ora mais pousada, ora mais ofegante, mas sempre modular, sem estardalhaço algum. Segue-se “Red Primary Afternoon” numa voz quase segredada e distante. “Far And Near” segue-lhe o ritmo, as batidas secas, e parece tratar-se ainda da canção anterior, mas há pequenas e quase indistintas diferenças entre estas canções gémeas que vale a pena escutar, atentamente. “When I Met You” é, como todas as outras, subtil, de textura densa, trabalhosa, destancando-se a voz de Jeremy Jay, quase falada, por sobre guitarras breves e sintetizadores que marcam os sombreados da canção. Depois, o tema que dá título ao disco entra em cena (e aqui a expressão vale mesmo pela sua conotação teatral) até porque o ambiente sonoro desperta um pouco, tanto no ritmo inicial como nos riffs de guitarra finais. “You Said It Was Forever” é linda, etérea, e paira ondulante até se extinguir (“É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!…”*), concluindo-se o disco ao som de “I Was Waiting”, mais uma deliciosa canção. Atente-se na letra e perceber-se-á um conjunto de referências a outras canções deste mesmo trabalho, e à temática geral do álbum, já referida no início deste texto.
Abandoned Apartments, diga-se perentoriamente para que não haja qualquer eventual engano, não é um disco para tempos de stress, nem para se ouvir à pressa. Exige um tempo próprio para degustação. Não é para se ouvir no carro, nem para ser escutado em casa, enquanto se faz qualquer outra coisa. E, se quiserem um conselho de quem já privou com ele bastantes vezes, deve ser ouvido à noite, muito tardiamente, já de madrugada, no abandono sombrio do seu apartamento.
* verso do poema “Manucure”, de Mário de Sá-Carneiro.
Eu vou lendo e minha vontade de ouvir as músicas vai aumentando,haja tempo para ouvir tudo o que leio,rs.