O dedilhado começa nervoso, inquieto o suficiente para que o som de uma guitarra possa parecer um ensemble alargado, para que Filho da Mãe não pareça música de um homem só de volta das suas seis cordas. A guitarra elétrica entra depois, a fazer companhia.
Estamos em “Sonho”, a faixa inaugural de Terra Dormente, e é como se duas mãos nos puxassem, cada uma para seu lado: uma a prender-nos à Terra, trazendo até alguma ansiedade pela incerteza do presente e pela ressaca pandémica de que este disco provém, outra a libertar-nos para esse maravilhoso outro mundo que nasce quando os olhos se fecham.
Filho da Mãe, o autor, não é nem um desconhecido nem um novato da música portuguesa. Antigo membro dos If Lucy Fell, homem do hardcore, do punk e das guitarras elétricas ouvidas a rasgar, Rui Carvalho (assim é o seu nome de batismo) já vai no seu sexto álbum. O primeiro, Palácio, já tem mais de dez anos. Estamos velhos, pois é, mas a música do Filho da Mãe ainda nos soa a nova. Agora, ainda mais.
O arranque do disco, com “Sonho”, é um bom começo, mas é ao segundo tema, “Música do Campo”, que começamos a sentir que este disco pode ser diferente. Distinto do que já lhe conhecíamos, do que estava para trás, com uma capacidade de desenvolver uma linguagem nova quase exclusivamente com recurso àquelas seis cordas e àquela caixa de madeiras que acompanha Rui para (quase) toda a parte. Inovar com tão pouco, eis uma missão espinhosa, uma prova de génio musical passada com distinção.
Em “A um Osso”, instala-se uma certa melancolia pachorrenta, Filho da Mãe volta a encontrar a beleza maior, parece quase uma depuração e a ascensão de uma linguagem musical trabalhada há anos ao seu ponto caramelo. E por aí vamos avançando, sempre bem, nesta música com ecos de Paredes e dos Dead Combo, de Portugal, de África e da América profunda dos fingerpickers, dos sonhos cinematográficos nunca monótonos (um violoncelo aqui, uma guitarra elétrica ali, um ritmo inesperado acolá), passando pela magnífica e elétrica “Supernova”, por esse estado transitivo, espectral e pungente, chamado “Entre Cá e Lá”, pela tensão de “Vozes Fora”, pela subtileza de “Traste Sorte”, por sons que não percebemos sequer de onde vêm (benditos pedais), por “Zeca Elétrico” e pelo barulho de tempestade de “Noise”.
É comum, em textos elogiosos sobre discos de autores cuja carreira já tem uns quantos anos, dizer que este é “o seu melhor álbum desde…”. Não conseguimos fazer já essas contas, mas não temos dúvidas nenhumas: onze anos depois da estreia discográfica, Rui Carvalho voltou a elevar o nível e a dar-nos uma banda sonora mágica, encantadora e encantatória. Grandessíssimo Filho da Mãe!