Os Retimbrar já andavam há uma macheia de anos a estremecer os alicerces dos prédios do Porto com as suas frenéticas batucadas; mas agora, com este belo disco de estreia, entram num novo patamar criativo, juntando ao vigor do ritmo a doçura da melodia. O coração da banda continua a ser o pulsar épico das percussões tradicionais (lideradas por “Pancho” e António Serginho) mas agora, graças à inventividade melódica e lírica da vocalista Sara Yasmine, os Retimbrar não são só coração: são também cabeça, são também lábios, que queremos marotamente beijar.
Porque amam a tradição, os Retimbrar reinventam-na, pois só como coisa viva a raiz sobrevive. Os vizinhos andam há muito a cochichar: “é um entra e sai constante naquela casa, com a doidona da música popular portuguesa metida ao mesmo tempo com ritmos de reggae, improvisações jazzísticas e flautas à Jethro Tull; uma vergonha.” Mas para o colectivo do Porto, escandalizar os puristas é um motivo de orgulho. O Portugal que celebram é mestiço e impuro, e por isso maior.
Os Retimbrar são assim, está-lhes no sangue. Urbanos, amam o campo, talvez com o mesmo vigor com que a gente do campo ama a cidade. O seu imaginário pode ser rural (o pão, a fonte, as sementes) mas a mundivisão é cosmopolita: a viagem, a descoberta, a liberdade. Toda a riqueza de Voa Pé advém desta tensão: léxico popular e rural, semântica citadina e libertária. Não admira por isso que numa canção sua citem versos de António Variações, num justo reconhecimento do seu legado. Se a filosofia é a mesma, o da mestiçagem descomplexada de espaços e tempos, a forma como a concretizam é oposta à do velho mestre. Variações tocava música popular portuguesa com sintetizadores nova-iorquinos; os Retimbrar tocam prog rock com cavaquinhos do Minho.
É neste delicado equilíbrio entre ritmo e melodia, tradição e modernidade, que se faz o disco mais português de 2016. Voa Pé é um golo do Éder. Voa Pé é a nossa pátria a bailar. Dancemos até o inverno chegar.