Primeiro de Novembro, véspera do dia dos fiéis defuntos. E tanto tempo depois (trinta anos!), o ritual ainda se repete. A mãe Mão Morta, “nascida dos ratos”, convoca todos os renegados que habitam as condutas subterrâneas, para a celebração da decadência e da desordem. São vanguardas, punks, talvez alguns assassinos, a maioria vestida de preto, todos escalando os túneis até à superfície, desembocando no ventre decadente da Almada velha. E que bem que soube, nestes tristes tempos de retrocesso e resignação, estarmos ali todos juntos outra vez, com a raiva a crescer nos dentes, mandando esta ordem podre para a rameira que o pariu.
Na retaguarda, os semblantes de Marx, Engels, Lenine, Trotsky, Estaline e Mao-Tse-Tung transmutavam-se nos rostos familiares de Joana Longobardi, Vasco Vaz, Sapo, António Rafael, Miguel Pedro e Adolfo Luxúria Canibal. Estava assim dado o tom revolucionário que atravessou toda a noite. Mas os Mão Morta vídeo-projectados não coincidiam inteiramente com os que estavam em palco: as já costumeiras “facas em sangue” não deixaram Miguel Pedro nada bem, obrigando o Ruca dos Pluto e dos SuperNada a ocupar-se da bateria.
Como seria de esperar, o novo álbum Pelo Meu Relógio São Horas de Matar dominou o alinhamento. Com a teatralidade que o caracteriza, qual Ian Curtis do Bom Jesus, Adolfo encenou de novo a história do seu atormentado protagonista: um tipo solitário, proveniente de uma desafogada classe média, que de súbito engrossa a lista das vítimas da crise, perdendo o emprego e a dignidade, e lutando da única forma que o seu desenraizamento permite: matando insanamente quem ele julga ser responsável pela infâmia, figuras de poder e autoridade como políticos, padres e banqueiros. Em “Pássaros a Esvoaçar”, enquanto o resto do gang nos espanca com aquela música lenta, mórbida e agressiva, Adolfo estende as mãos, de olhos absortos, implorando-nos um qualquer naco de pão bolorento, personificando assim a horda de desempregados famélicos de que fala a canção. Sem dúvida, o momento alto da noite.
O resto do alinhamento foi quase todo preenchido com malhas dos primeiros álbuns, com particular destaque para o Mutantes S21, canções sujas e agressivas que rimam bem com a crueza do novo álbum. O pessoal bem entoou vezes sem conta o la-la-la da “Primeiro de Novembro”, tão consentâneo com o calendário, mas Adolfo, de voz cavernosa e deliciosa altivez, rematou: “não somos os Xutos”. Parece que os dois únicos ensaios que tiveram não deram tempo para revisitar o longínquo clássico.
No final, olhámos para o relógio. Sem surpresa, eram horas de matar…
Alinhamento
Irmão da Solidão
Quero Morder-te as Mãos
Oub’lá
Berlim
Histórias da Cidade
Pássaros a Esvoaçar
Budapeste
Barcelona
Vamos Fugir
Hipótese do Suicídio
Lisboa
Anarquista Duval
Velocidade Escaldante
Véus Caídos
Horas de Matar
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Fotos de Mário Romano