
Estava uma noite chuvosa no passado dia 30 de janeiro e as horas estavam a fugir-me. Correndo pelo Rato, Príncipe Real e Bairro Alto, ia a tentar recuperar o tempo que tinha perdido, o tempo que não queria perder. Ia ver o concerto de lançamento do LP Cabeça, do Rui, aquele Filho da Mãe.
Por entre ruas sozinhas ia andando de passo acelerado, fugindo da chuva, tentando não atrasar-me. Com o coração acelerado que a pressa nos provoca cheguei à Galeria Zé Dos Bois… a tempo. Ainda bem. Entrei, escolhi a minha rodela de escuro, e recuperei, aos poucos, o ar irrequieto que tinha fugido de mim. Começou Guido Nellie. Um carioca de voz calma, tom calmo, sonoridade calma. Demasiado calmo.
Nisto tudo, o quente da sala acentuou-se pelos abafos e respirares ansiosos de quem já salivava por acordes, riffs e pregos. Sentia-se um entusiasmo calmo, contido. Eu também estava assim.
De repente, entre aguaceiros que andavam para a frente para trás, lá fora, no escuro da noite que já se sentia, Filho da Mãe subia ao palco: de barba tão imponente como o som que os seus dedos criam, sorriu e sentou-se. Ajustar pedais, check. Ajustar microfones, check. Afinar guitarra, check. Tudo check. Estava montada a tela por onde a música ia passar e fazer-nos um desenho.
Sob a aura laranja dos dois holofotes que o protegiam, o momento mágico em que os dedos tocam no aço das cordas, percorrem a sua extensão tensa, saltam sobre os travessões de madeira, enrijecem na forma que as notas lhes ensinaram, tudo isso, esse momento, de preliminares musicais, chegava… Como um fulminante, o Cabeça chegava.
É importante dizer que, cada vez mais, considero um concerto de Filho da Mãe tudo menos um concerto: estamos a falar de arte, de uma autêntica performance artística em que a música ganha contornos difusos, fora do seu padrão normal, pautado por álbuns, faixas, concertos, etc… Falamos de purismo musical, logo falamos de arte pura, em bruto. E é assim que a entendo. É assim que a recebo. E foi assim que foi, mais uma vez.
O novo álbum, logicamente, dominou. A Cabeça tapou tudo e só se viu (ouviu) aquilo que a compunha. A setlist seguiu quase de cor a ordem das faixas que compõe o álbum. Dissemos antes e dizemos agora: do Palácio a este Cabeça muita coisa mudou. Estamos perante um som tão forte como o de antes, mas mais preciso, mais controlado. Tudo está mais intenso, quer as partes melancólicas, que continuam a transbordar de portugalidade, como as mais pulsantes, as mais voltaicas. É sem dúvida de destacar tanto A “Bipolar”, como a “Bipolar Dois”, como momentos tremendos, mas particular destaque para a distorção e conjugação de loops que compuseram o climax da noite… e isto a meio do concerto.
Mas como disse, ouvir/ver Filho da Mãe tocar é mais que agitar o corpo ao som de umas melodias, é mais que a fechar os olhos e deixar o mundo cair em nós. Assistir ao Rui Carvalho a tocar é ver um quadro bonito a ser pintado. Estejamos na maior sala de concertos do mundo ou no bar mais apertado que possa existir, a profundidade do que ouvimos têm o dom de nos deixar desenhar, de olhos fechados, aquilo que cada escala nos faz lembrar, sentir.
Eu fecho os olhos e vejo azul. Uma tira horizontal, grossa, da cor azul. Com a textura de uma aquarela, essa tira mexe-se, ondula. Por cada nota mais aguerrida, o azul escurece. Como um elástico: na tensão do ritmo ela salta, fica quase negra, mas quando volta ao normal, também o azul calmo retoma o seu lugar e tudo continua a fluir com a calma do início. Isto, repetido vezes mil, acompanhado com o arrepio da praxe.
Por entre pequenas, espirituosas, pausas para interagir com o público, Filho da Mãe, ofereceu-nos um valente concerto. Uma hora e pouco de intensidade musical, ou seja emocional, implacável. Sentimos o fim quando, no encore, a já clássica Helena deu um ar de sua graça. Acabava-se por hoje.
Com a sala já mais iluminada, os corpos dispersaram-se e apercebi-me de que estava mais ofegante ali do que quando corria para lá chegar. Tudo bem que estou constipado, e respirar fica mais difícil, mas muito do ar que ia colhendo ficou, de certeza, preso no mundo bom que esta música oferece.
(Fotos gentilmente cedidas por Vera Marmelo)