Ainda havia algumas nuvens no céu, mas já sem ameaça de chuva. Caiu toda de manhã, felizmente. Uma noite como a de ontem, apesar de fresca, não merecia ser molhada por um verão que tarda a chegar. O cenário de mais um concerto do EDP Cool Jazz estava mais bonito do que nunca, e é de facto um prazer podermos permanecer nos Jardins do Marquês de Pombal por algumas horas, ainda para mais na presença de música de primeiríssima qualidade. O primeiro concerto esteve a cargo de Márcia, nome novo da música portuguesa, embora já com dois trabalhos em nome individual no currículo, e participações com alguns outros músicos de créditos firmados. Depois, e era por ela que todos esperávamos, Suzanne Vega.
O que dizer de Márcia? Faço uso de parte da letra de uma das sua canções, para iniciar a resposta: “Passo os dias a pensar no céu aberto / que não chega nunca”. Na verdade, Márcia merecerá um futuro limpo e luminoso, mas ainda lhe falta algum caminho pela frente, embora se ouça um presente bastante promissor. Tem uma voz muito bonita, canções que se ouvem sem enfado, algumas até de enorme qualidade melódica. Exemplos disso são “Para Quem Quer”, “Deixa-me Ir” e “A Pele Que Há Em Mim”, está última com participação de J.P. Simões. As três canções referidas terão sido os momentos mais altos do seu concerto de pouco mais de meia hora. Junto-lhe uma quarta, a elegante “Cabra-Cega”, que tem um verso que soa particularmente feliz na voz da sua autora, e que diz, num misto de pose e sinceridade assumida, “Eu sei que é fácil de montar o aparato da menina que é culta”. Fica-lhe bem o verso, a ideia, e a vontade que parece firme em se afirmar no meio musical sem maquilhagens e adereços. O tempo dar-lhe-á razão, até porque só os verdadeiros vingam.
Veio o intervalo, e uma cerveja entre amigos soube bem. Por volta das 22h40, Suzanne Vega entrou em palco. Veio na companhia do excelente guitarrista Gerry Leonard (seu cúmplice habitual, homem de confiança de Bowie, e que já o tinha visto ao lado de Rufus Wainwright, por exemplo) e do baterista Doug Yowell. O concerto começou com “Fat Man & The Dancing Girl”, do distante 99.9F, e sem que estivesse preparado, surgiu “Marlene On The Wall”, sempre elegante, perfeita canção do primeiro disco de Vega, espécie de hit impossível de tão acústico e intimista que é. Cantei-a por dentro, de uma ponta a outra, e há tanta verdade nessa canção, que assusta pensar como é que alguém que nunca conheci, me conhece tão bem… Suzanne Vega é uma artista verdadeira, que sabe da importância das palavras que canta. Sabe que uma canção não existe apenas para ser cantarolada. É mais do que isso, uma canção. É um momento de verdade que nos pode tocar intimamente, uma extensão do que somos sem nos pertencer de facto, mas que alguém se lembrou de criar para nós. É por tudo isso que Suzanne Vega pertence a um outro patamar artístico. “Caramel” juntou-se à festa, até que se ouviu “The Fool’s Complaint”, do recente Tales from the Realm of the Queen of Pentacles, de que já neste site vos demos conta. Seguiu-se a faixa que abre esse mesmo trabalho, a bonita “Crack In The Wall”, que lida com a presença do mundo espiritual, que por vezes se insinua e se faz notar como uma pequena fissura no nosso dia-a-dia, comunicando connosco. Depois, meu Deus, depois soaram os acordes e os versos de “Small Blue Thing” (“Today I am / a small blue thing / Like a marble / or an eye”. Novo enorme estremecimento interior… Na canção seguinte, Suzanne Vega fez questão de dizer que a tocou em Portugal, pela primeira vez, há 25 anos, e que as mulheres portuguesas podem (quiçá) rever-se ainda nela: “In the Ironbound section / Near Avenue L / Where the portuguese women / Come to see what you sell”. É eterna, esta “Ironbound”! Mas os grandes momentos e as grandes canções não tinham fim. As tragédias humanas que Suzanne Vega tão bem canta continuavam a aparecer, como na extraordinária “The Queen And The Soldier”, do seu disco de estreia. Depois de mais uma breve passagem pelo trabalho recente com a menos conseguida “Don’t Uncork What You Can’t Contain” e a mais interessante “Jacob and the Angel”, outro momento que não estava à espera: “Left Of Center”, canção do filme Pretty In Pink, fez-me recuar no tempo, uma vez mais. “I Never Wear White”, uma das melhores canções de Tales from the Realm of the Queen of Pentacles, foi o momento ideal para a guitarra ruidosa de Gerry Leonard se mostrar de novo. Excelente momento! Até que chegou “Luka”, e adivinhou-se que o fim do show não demoraria muito a chegar. “Luka” continua forte. Na verdade, nas canções e na voz de Suzanne Vega parece que nada se alterou. Tudo permanece igual, e isso é algo verdadeiramente extraordinário para quem tem já muitos anos de estrada e de carreira. “Tom’s Diner” encerrou o que Suzanne Vega tinha para nos oferecer, antes do encore. Não foi à capella, desta vez. E ainda bem, uma vez que o novo arranjo é muito ritmado e entra bem no espírito de fim de festa.
Quando regressou ao palco para as três musicas finais, a cantora norte americana perguntou que tipo de canção queríamos ouvir, se “barulhenta e interessante”, se uma mais “intimista”. Venceu a primeira hipótese e surgiu “Blood Makes Noise”, com a guitarra de Leonard a soar como uma metralhadora de trovões em noite de chuva e tempestade. O público pediu “In Liverpool” logo a seguir, e Suzanne Vega fez a vontade aos presentes, embora cantasse primeiro a lindíssima “Gypsy”. Antes de iniciar a canção, explicou que a fez quando tinha 18 anos, e que foi o resultado de um grande amor adolescente, que terminou antes do tempo, como todos acabam, efetivamente. E acrescentou, depois de terminar “Gypsy”, que a canção “In Liverpool” foi composta bastantes anos depois, quando reencontrou esse amor perdido, em Liverpool. Ficámos cúmplices e conhecedores dessas circunstâncias, e foi assim que o concerto terminou.
No rescaldo de tudo isto, e quando redijo estas últimas linhas dando-me conta de que são quase 3 horas da manhã, penso que faltaram, por exemplo, “Night Vision”, “Solitude Standing” ou “Tired Of Sleeping”. Mas isso seria pedir demasiado a quem nos deu tanto numa noite que começou fresca, e que acabou bem acolhedora e quente, enganando o termómetro real do tempo que se fez sentir em Oeiras.
(Fotos gentilmente cedidas por Fernando Mendes)