
O papel a dizer “Lotação Esgotada” na porta do Salão Brazil fazia-nos prever uma noite animada, de uma maneira que só B Fachada conseguiria. E, claro, toda ela feita em fachadês.
O concerto começou com uma versão de «Afro-Xula» ao piano, só o artista e o instrumento. Terminada a música, levantou-se e, dirigindo-se aos teclados, aproximou-se do microfone e fez questão de confirmar as suspeitas de quem já o tinha vislumbrado a vaguear pela sala, com um ar abatido e cansado: «Estou doente», disse. Rindo-se, acrescentou ainda: «Mas já estou medicado».
Vimo-lo, então, a fazer algo que já há algum tempo não fazia: pegar na braguesa. No Facebook, Fachada já tinha anunciado que, nesta digressão, a guitarra especial o acompanharia. Mas da promessa ao belíssimo som que, apenas com um pouco de delay, do amplificador começou a brotar, ia alguma distância, agora quebrada com o dedilhar dos primeiros acordes de «Mano». Com especial ênfase no verso «não estou cansado, estou fodido», da soturna música passou-se, por entre uma salva de palmas algo efusiva, para a orelhuda «Mana».
Com a braguesa pousada, «Quem quer fumar com o B Fachada?» foi a canção que se seguiu. No entanto, a canção foi apresentada numa versão semi-acústica. Isto porque, embora tocada nos teclados, a ausência da secção rítmica criou uma sensação de intimidade que a música, normalmente, não apresenta. Sintoma da gripe? Falta de memória no sampler? Quem sabe. O que é facto é que isto mostrou uma beleza diferente da música, portanto ainda bem que aconteceu.
«Dá mais música à bófia» viria a seguir. Depois, a muito africana «Crus» pôs muitos rabos a mexer, com aquele seu ritmo ao qual é impossível negar um pezinho de dança – uma arte, como uma banda no início dos 90 afirmou numa música sua. Mais uma grande salva de palmas para o artista que então, comovido, disse: «não sei quantas pessoas estão no Tiger Man [concerto a decorrer ao mesmo tempo no Teatro Académico Gil Vicente], mas obrigado a vocês por terem vindo e por estarem aqui». Continuou a amostra de B Fachada, terceiro homónimo, com «Camuflado» e com a «invocação de uma alma de Coimbra», em “Já o tempo se habitua”, a excelente versão do tema de Zeca Afonso.
Era tempo para braguesada. Envoltas num som doce mas triste, próprio do instrumento, «O Fim» e «Boa Nova» proporcionaram o momento mais emocional da noite, no qual não houve alma que ousasse fazer o mais pequeno sussurro. Na última, tocada um pouco mais devagar do que a versão de estúdio, a melancolia e a amargura que a música, só por si, já tem foram amplificadas a um nível tal que causou comoção em muitos, numa intimidade que só B Fachada sabe criar. Terminado este belíssimo momento, ouviram-se aplausos como ainda não se tinha ouvido no concerto. Lá pelo meio, alguém pediu «toca a Beijinhos!», ao que o artista retorquiu com «muitos beijinhos para ti» e, por entre uma risada geral, «Pifarinho» começou a ressoar no Salão Brazil. Aquela que é talvez a melhor música do último álbum de Fachada pôs o público a entoar em uníssono a letra inteira, em especial o refrão bárbaro «Reich, ich bin ein Poltergeist». Com uns a dançar, outros a cantar e um a guiar todos, a festa seguiu para aquilo que aparentava ser o final da noite.
A saída de palco parecia confirmar essa hipótese. No entanto, as palmas trouxeram B de volta ao palco. Então, naquilo que parecia ser um encore como todos os outros, com várias canções e depois a verdadeira despedida, Fachada decidiu inovar e tocar uma música a valer por vários encores: «Deus, Pátria e Família». O fachadês nunca se viu tão glorificado como nessa noite. O portento de 20 minutos foi tocado na íntegra e, todo ele, acompanhado pelo público, que, juntamente com B Fachada, fez questão de ajudar a enaltecer aquele estilo tão próprio e único. A união e as cordas vocais foram particularmente fortes na altura de cantar os versos «Eu não sei português e que se foda Portugal / eu canto em fachadês, a minha língua paternal». Chegando ao fim da música, ouviu-se a maior salva de palmas de toda a noite, à qual o artista respondeu com inúmeros agradecimentos, despedindo-se com um «até à próxima» saudoso.
Nesta noite, o destaque vai para a celebração da canção e da tradição, que, de uma maneira tão única, B Fachada incorpora e molda. Em cada álbum que edita, vai reescrevendo a maneira como se interpreta essa coisa que é a tradição, procurando incessantemente novos modos de a ver e de a passar ao mundo. Talvez por isso é que não consegue fazer dois álbuns iguais. Um concerto que só serviu para, mais uma vez, confirmar que continua a ser ele, B Fachada, o único digno herdeiro dos grandes cantautores portugueses do séc. XX. E é por causa disto, por não ser só mais um num mar de muitos, que gostamos tanto deste nosso tio.
(Fotos: Mónica Tomás)