Todos nós sabemos da voz imensa de Amália – aquele caldo de dor, destino e saudade que a todos nos faz chorar. O que já nem todos sabemos é que alguns dos seus fados mais emblemáticos – como «Estranha forma de vida» e «Lágrima» – têm também as suas palavras, versos puros e expressivos como aquela voz que as canta. Talvez por insegurança e medo da comparação – grandes poetas como Alexandre O’Neill, David Mourão Ferreira e Pedro Homem de Mello guerreavam-se pelo privilégio de servir a sua voz – poucos dos seus versos se tornaram canções. Esses textos ficaram muito tempo soterrados na gaveta até que em 1997, por insistência de amigos, Amália acabou por permitir a sua publicação.
E o livro «Versos» ficou em poisio durante muitos anos até que a actriz Manuela de Freitas desafiou Amélia Muge a musicar estes poemas. Este convite não poderia ser mais apropriado. Em primeiro lugar, pelo amor que tem a Amália desde criança. Em segundo lugar, porque Amélia há muito que cozinhava a ideia de prestar um tributo ao fado. E que melhor tributo do que o de musicar poemas da melhor fadista de sempre?
O disco saiu em Dezembro, chama-se Amélia com versos de Amália, uma vogal apenas de diferença onde cabe toda a cumplicidade. Mas só nesta noite maravilhosa na Culturgest é que as canções conseguiram escapar-se da frieza da rodela de um CD e ganhar vida no calor de um palco.
O espectáculo era também visual porque as palavras de Amália – ilustradas pela própria Amélia Muge – eram vídeo-projectadas, envolvendo o palco num bonito rendilhado.
Amélia começou por declamar sem música os conhecidos versos de «Gaivota». O objectivo era claro: pedir ao espectador para que a sua atenção estivesse focada acima de tudo nas bonitas palavras de Amália.
Seguiram-se depois as incríveis canções, a maioria compostas pela própria Amélia Muge, outras da autoria dos companheiros de estrada José Mário Branco e de Michales Loukovikas. A beleza das composições, o bom gosto dos arranjos, a irreverência em transviar as palavras da fadista para outros universos estéticos e as condições técnicas perfeitas do grande auditório da Culturgest proporcionaram-nos um espectáculo perfeito.
O clímax da noite aconteceu quando, fugindo ao disco, Amélia canta o fado de Amália «Lágrima», o tal cujos versos tinham sido declamados na abertura do palco. Pedindo desculpa pela heterodoxia da sua reinterpretação, Amélia argumenta que é a sua «maneira de ouvir a lágrima de Amália». Foi também a nossa.
Alinhamento:
- A lua
- Tenho dois corações
- Ai de mim que me perdi
- Sou filha das ervas
- Bicho de conta
- 335 gafanhotos
- O mosquito mordeu-me no olho
- Quadras soltas
- Os teus lindos olhos pretos
- O tempo dantes corria
- Meu coração sem direito
- Eu vivo a vida perdida
- Carta a Vitorino Nemésio
- Lágrima
- Faz-me pena