Pouco ou nada se sabe acerca de Sibylle Baier, misteriosa atriz e cantora cuja fugaz relação com as artes cria resistência a atribuir-lhe uma ou outra ocupação. Mas chegou para lançar um fantasmagórico disco de folk gélido, A Colour Green, trinta e poucos anos depois de o fazer.
Por vezes é fácil navegar o vasto oceano das redes e dar de caras com mais informação do que julgávamos sequer existir sobre coisas que descobrimos há cinco minutos. Minhentos artigos, entrevistas, ensaios, comentários, observações, críticas, centenas e centenas de palavras alinhadas na ordem perfeita que nos permita desvendar um mistério que há quinze anos atrás assim permaneceria. Mas às vezes não é. E às vezes os mistérios teimam em continuar envoltos na escuridão num mundo repleto de interruptores à distância de um clique.
Não sei nada sobre a Sibylle Baier. Ninguém sabe, pelos vistos. Ninguém quer saber, a julgar pelos escassos ouvidos que passaram pelo que existe da sua música no deserto dos discos desconhecidos achados ao acaso diante do computador em tardes monótonas. Uma rápida pesquisa no Google do seu primeiro e último nome não nos leva a um único registo de um depoimento seu acerca de Colour Green, o seu único disco, gravado na década de setenta e lançado em 2006 através da Orange Twin; três ou quatro doidos de vinis debitam ao acaso sobre como o seu gentil trabalho lhes dobra de maneiras boas o coração; fotografias antigas de mofo desvendam as suas feições de uma beleza perfeitamente normal, de nariz arrebitado e olhos pequeninos. Mas quem é a voz angelical por detrás do disco que descobri hoje?
Sibylle Baier nasceu a 25 de fevereiro de 1955 na Alemanha, mas nem a cidade sabemos qual: mas a sua postura rígida, controlada, quase fria ao canal auditivo, não nos deixa duvidar da sua ascendência germânica. Sabemos que tocou, como tantas outras crianças, piano e guitarra enquanto crescia (quanto tocaria? pouco? muito? será que aprendeu numa escola, numa casa, será que não aprendeu de todo e que imaginar os músicos que ouvimos a tocar guitarra e piano a fazer o mesmo habitando uma versão miniatura de si mesmos apenas nos enternece e por isso é que dizemos estas coisas?). De qualquer das formas, aterrou de cabeça num filme do Wim Wenders, Alice in the Cities, ainda em moça. Como quem não quer a coisa – mas não nos iludamos, não era uma Anna Karina descoberta, pois o seu papel limitava-se apenas ao de “uma mulher”. Mas Wenders certamente gostou dela, convidando-a para participar em Palermo Shooting quase quarenta anos depois (um episódio raro de um produto algo mal recebido na carreira do realizador). Mas a sua relação com o cinema começa e acaba aqui. E a com a música é ainda mais fugaz, ao que parece.
Em 1970, escreveu a sua primeira canção, assumimos, com a naturalidade de quem escreve uma primeira canção: apesar da inspiração parecer ser uma de proporções épicas – uma viagem através dos Alpes com uma amiga que lhe “salvou a vida” depois de um período particularmente negro – a música que originou é pequenina e humilde, uma melodia melancólica que vê o sol a espreitar por entre as nuvens cinzentas, com uma letra trivial que descreve o seu dia que a amiga melhorou com a rigidez objetiva de uma jornalista, mas com a sinceridade real de uma boa companheira. “Remember the Day” é um dos temas que compõe o seu Colour Green, gravado entre 1970 e 1973 e lançado oficialmente em 2006 pela Orange Twin.
Sibylle Baier possui uma autoridade a cantar as suas músicas própria de alguém que sabe que não existe mais ninguém assim no mundo. E, mesmo assim, não ouvimos em Colour Green nada particularmente inovador, experimental, ousado, ou sequer inacreditavelmente profissional: apenas, salvo raras excepções (como é o caso da maravilhosamente orquestrada última faixa, “Give Me A Smile”), um dedilhado domado mas sem grandes aventuras da guitarra acústica e a voz, aquela voz. A voz de Sibylle Baier só podia ser alemã: sabe a neve, branca e fria, bela na sua estoicidade de cubo de gelo. Lembra, por vezes, uma outra voz alemã que será bem mais familiar ao mundo todo: aquela que cantava These Days, Chelsea Girl, Sunday Morning… Encontram-se na sua metalicidade europeia das mulheres que não sorriem muito. Mas, ao contrário de Nico, cuja secura absoluta chega a soar quase sarcástica ou entediada, Baier acredita em todas as palavras que canta, como as canta, da maneira que as sabe sentir.
Colour Green possui assim o charme de um disco que nunca se deixa descobrir, soterrado em camadas e camadas de mistério que nem vale a pena desembrulhar (mesmo se tal fosse possível). Descobrimo-lo dentro do possível. Sibylle permanecerá um fantasma cujo nome que não nos dá resultados no Google. Mas não faz mal: por ela, seremos assombrados.