Moondog é um enigma dos mais clássicos: sobrevive-lhe tudo, para além do mito. Mas no tudo é que está o segredo – centenas e centenas de composições do músico de rua que o Philip Glass elogiou e com quem Charlie Parker quis gravar.
Por estranho que pareça, talvez quem tenha traçado um esboço mais concreto do que Louis Thomas Hardin, ou Moondog, foi e é, foi o ícone de glam rock Marc Bolan, quando o referenciou de passagem no tema “Rabbit Fighter” dos seus T.Rex: “Moondog’s just a prophet to the end…”. Querendo ou não, o bizarro quási-viking da 6th Avenue fez de tudo para incorporar todas as místicas qualidades de enigma que pintam os comuns mortais de tons proféticos: cego desde os dezasseis anos, abriu furiosamente os ouvidos à música, aprendendo a arte semi escolasticamente, semi por si mesmo, e, quase sem sair do mesmo canto do chão Nova Iorquino, lançou dezenas e dezenas de discos e por ele apaixonou nomes de peso como Charlie Parker, Philip Glass e Steve Reich, que levavam o estranho maluco barbudo de capacete medieval “muito, muito a sério”. Morreu no seu paraíso sonhado, a distante Alemanha, quase um século depois da sua vinda ao mundo, em 1916. Mas deixou espalhado por todos os lados, um tanto desarrumado, um legado enquanto compositor, músico, inventor de instrumentos musicais, teórico e poeta que ninguém adivinharia nascer de um aparente mendigo que havia pedido o seu nome emprestado a um canídeo melancólico.
Louis Thomas Hardin nasceu na pequena cidade de Marysville, no Kansas, a maio de 1916, no seio de uma família profundamente religiosa. O ritmo sempre habitou todas as vértices do seu corpo, e referia-se, com algum repúdio à crença de que a música é uma arte que só vive dentro das paredes de um conservatório sério, ao seu primeiro instrumento, uma caixa de cartão re-imaginada como uma bateria, com saudade. Uma das suas primeiras memórias descritas (ainda visuais) trata-se de uma visita com o seu pai a uma mística cerimónia índia, onde se sentou, ainda criança, ao colo do chefe da tribo, onde nas suas mãos foi colocado um timbalão revestido de pele de búfalo, instrumento musical que os seus dedos voltaram a tocar anos e anos mais tarde.
Aos dezasseis anos, na sequência de um acidente envolvendo dinamite, cegou de ambos os olhos, tragédia que lhe marcou a face com dois tristes bolsos de pele melancólicos a cobrir uma íris imaginária – uma expressão que lhe conferia uma certa dose de Frankenstein-ismo capaz de assustar crianças. Mas, com os olhos permanentemente fechados ao mundo, decidiu focar-se em afinar o canal auditivo, e passou o início da sua juventude a estudar música “como deve ser”, apurando o ouvido musical e aprendendo a ler e a escrever partituras, sempre em Braille, numa escola para invisuais no estado de Iowa.
Em 1943, os ventos de mudança sopraram um ainda mais ou menos jovem Louis Thomas Hardin para o mítico estado de Nova Iorque, que borbulhava em cultura e esquisitice em iguais medidas: encaixar-se-ia perfeitamente, portanto. Foi no coração da cidade que montou o seu estaminé, e a sua estadia quase permanente no asfalto da 6th Avenue levava a crer os transeuntes que era um pobre sem abrigo, quando na verdade sempre possuiu apartamento para onde ir dormir ao fim do dia. Músico de rua de profissão, foi atraindo a atenção dos nova iorquinos, que se julgavam especiais por atentarem em coisas destas. Mas, de facto, Moondog seria difícil de ignorar (havia adoptado este novo e enigmático nome de um cão que “uivava sem parar à lua”); cego, de descuidada barba e eternos cabelos que logo foram contidos dentro de um capacete tipo viking de modo a evitar comparações fáceis à figura de Jesus Cristo (odiava a religião católica), enchia a cidade de sons mágicos germinados dentro de bugigangas rítmicas e melódicas nunca antes avistados: inventou inúmeros instrumentos musicais, sendo destes o mais memorável o “trimba”, um pequeno triângulo de madeira cujo ritmo marcava os dias atarefados da vida citadina. A música de Moondog era intensamente esculpida pelo ritmo e compasso da cidade que o rodeava, das pessoas, dos pássaros, dos autocarros, das buzinas. Cunhou para as suas composições o termo snaketime: “é um ritmo escorregadio, em tempos que não são comuns: eu não vou morrer num quatro por quatro”, afirmou.
As suas bizarras mas ponderadas composições atraíram a atenção de figuras com nome grande das mais diversas ligas musicais: a sua relação com Charlie Parker era tal que lhe dedicou um tema, “Bird’s Lament”, originalmente escrito para o saxofonista, que partiu antes que cumprissem o pacto a dois de gravar um disco conjunto, e a promessa quebrada dá ao tema domingueiro um gosto amargo que dantes não encontrávamos lá.
Mas eram também os grandes deuses da nova música que já mal se podia chamar clássica, Philip Glass e Steve Reich, que levavam o misterioso barbudo que tocava instrumentos inventados a fio sentado no cimento “muito, muito a sério”. Mal sem abandonar o seu posto cativo na sua avenida preferida, Moondog certificou-se que as suas composições (todas elas compostas em Braille) eram traduzidas pelas pessoas certas para partituras de gente com olhos de ler e transformadas em belíssimos textos musicais, tais como o seu maravilhoso álbum homônimo de 1969, entre muitos outros. Aquele que alguns julgavam ser apenas mais um velho tresloucado a tocar em torno de uns trocos para cigarros e droga já editara discos com a Prestige e a Columbia. Já trocara promessas com Charlie Parker. Mas eles não precisavam de saber.
Em 1974, fez as malas e partiu com as suas partituras e instrumentos para o seu paraíso idealizado, a Alemanha – o seu fascínio pela mitologia europeia levara-o a construir na sua casa, ainda em Nova Iorque, um templo improvisado a Thor, deus dos trovões e das batalhas. Ainda regressou mais uma vez à América, em 1989, a convite de Yale Evelev, para conduzir em ocasião especial a Orquestra de Câmara Filarmónica de Brooklyn: o seu estilo enquanto maestro – conduzia os músicos não acima deles mas ao seu lado – intrigou e deu azo a uma justificação bonita por parte do compositor: a de que não se vê como superior à orquestra e aos músicos, mas sim como seus iguais.
Depois do episódio, regressou para sempre para a Europa, onde uma jovem e gentil estudante, Ilhona Sommer, hospedou o já velho Moondog na sua casa de família, traduzindo pacientemente as centenas e centenas de partituras que o ainda energético geriátrico ia escrevendo no seu Braille de sempre. Muito do que nos chega de Moondog, seja assente na estante enquanto músico ou impresso no vinil enquanto ouvinte, agradecemos-lhe, e talvez seja ela uma das grandes heroínas desta história.
Moondog morreu de ataque cardíaco a 8 de setembro de 1999, em Münster, na Alemanha. Sobrevive-lhe a música, e sobrevive-lhe o mito. O mito no qual Charlie Parker, Philip Glass e Steve Reich acreditaram. No qual Ilhona Sommer acreditou. E nós também havemos de acreditar, porque é real e existe, e mesmo se um dia a luz dos nossos olhos se apagar e deixarmos de ver aquilo que temos de decidir ser verdadeiro ou falso, escutamos para sempre.