Entre 1975 e 1984 Springsteen fez as suas cinco obras-primas: Born to Run, The Darkness on the Edge of Town, The River, Nebraska e Born in the USA. Duas características unem estes discos aparentemente dispersos: todos medem a distância que existe entre o “american dream” prometido à classe operária e a sua amarga realidade; e todos pincelam esse retrato reinventando a velha iconografia do nascimento do rock’n’roll. Num primeiro tempo, tentaremos perceber as razões subjacentes a este ambicioso empreendimento, traçando para o efeito uma breve história do lugar da “working class” no rock’n’roll americano; num segundo tempo, chafurdaremos nos segredos de cada um dos discos. Fechem a porta do velho cadillac; a viagem pela auto-estrada americana está prestes a começar.
O rock’n’roll nasceu nos anos 50 no sul dos Estados Unidos, no seio das suas classes trabalhadoras. Surgiu primeiro nos espoliados de pele mais escura mas depressa passou também para os de pele mais desbotada, pois, melanina à parte, era sempre a mesma pele gretada e calejada por uma vida de trabalho extenuante.
Tudo começou meio século antes com o surgimento do blues nas margens sangrentas do Mississippi. Se a música do delta era originalmente arrastada e melancólica, depressa surgiram variantes mais mexidas como o “jump blues” dos anos 40, onde o frenético saxofone de Louis Jordan rapidamente se destacou. Em 1949, na efervescente cidade de New Orleans, Fats Domino gravou “Fat Man”, um dos primeiros exemplares de rock’n’roll. No mesmo circuito rhythm and blues, Little Richard estreia-se em 1951 com “Every Hour”. Era esta a música que a “working class” negra fazia e consumia. Mas mesmo no abjecto regime de segregação racial do sul profundo havia saudáveis efeitos de contaminação racial; não no seio da burguesia branca, que vivia isolada na sua torre de marfim, mas na sua classe trabalhadora, negros pobres e brancos pobres unidos na mesma dura faina.
Os adolescentes brancos de classe baixa tinham um secreto fascínio pela extrovertida cultura negra, invejando a sua liberdade e ousadia. Aos poucos, os “white boys” mais rebeldes começaram a imitar os seus amigos negros, copiando-lhes a indumentária, os penteados, a gíria, a música, os passos loucos de dança. Na vida “out in the street” dos teenagers brancos, esta apropriação cultural era uma fonte importante de capital simbólico, providenciando-lhes a “coolness” necessária para serem aceites pelos seus amigos mais vadios. Elvis Presley era um desses “white negros”, miúdo pobre cuja subsistência na infância dependera muitas vezes de senhas de alimentação. Nascido e criado em Tupelo, Mississippi, e mudando-se na adolescência para Memphis, Tennessee, conviveu desde cedo com uma vizinhança maioritariamente negra, amando a sua música e estilo de vida. Camionista de profissão, sonhava com outras viagens, razão pela qual em ’54 procurou a mítica Sun Records.
É aqui que entra em jogo outra peça fundamental das origens do rock’n’roll: o visionário Sam Phillips, também ele “working class” até ao tutano. Filho de camponeses pobres do Alabama, trabalhou em criança na dura apanha do algodão, e a experiência de ouvir então os rendeiros negros cantando enquanto trabalhavam deixou marcas indeléveis no jovem Phillips. Quando muitos anos mais tarde, numa passagem fortuita por Memphis, Sam ouve a incrível música negra da Beale Street, a ressonância emocional é de tal ordem que começa aí o sonho de a divulgar e produzir. Em ’54, com a sua editora já a carburar, Phillips escuta pela primeira vez um jovem branco cantando com uma incrível voz negra. De imediato percebe que lhe saíra a sorte grande.
Estava certo: “That’s All Right (Mama)” é um sucesso, o nascimento instantâneo de uma estrela. O mundo do rock’n’roll, maioritariamente constituído por artistas e empresários da classe trabalhadora, explode no mainstream, chegando também aos adolescentes da classe média. Uma revolução cultural acaba de acontecer: a rebeldia contra a respeitabilidade burguesa bate à porta dos adolescentes de todas as classes sociais. O mecanismo é sempre o mesmo: a procura de estatuto pela associação aos de “baixo”. Dito com um pouco mais de cinismo: imitar a rebeldia dos “pobres” é cool quando a generosa mesada dos papás continua a pingar…
Toda esta contaminação da adolescência americana com valores originários das classes mais baixas ocorrera através da forma do rock’n’roll e não do seu conteúdo. As letras sempre foram politicamente inofensivas, rimas parvas de amor, “bebop-a-lula, she’s my baby / bebop-a-lula, I don’t mean maybe”. Toda a sua subversão decorre da rebeldia da sua forma: os gritos e saltos para cima do piano de Little Richard, o gingar das ancas de Elvis a tresandar a sexo, Jerry Lee Lewis tocando o piano com os pés, a suja distorção da guitarra de Chuck Berry.
É neste ponto que devemos regressar a Springsteen. Com apenas sete anos, Bruce vira Presley no Ed Sullivan Show: amor à primeira vista ao rock’n’roll. Quando aos treze anos conseguira convencer a sua mãe a comprar-lhe uma guitarra, era a mesma imagem mágica do Elvis da sua infância que de novo o visitava. Para um puto pobre que cresceu num subúrbio de New Jersey, confinado pela falta de oportunidades, educação católica e autoritarismo do pai, a magia do rock’n’roll providenciava-lhe por fim uma válvula de salvação.
Dêmos agora um salto no tempo, ignorando olimpicamente as suas bandas de garagem de adolescência na costa de New Jersey, o flirt com o hard rock, a sua transição para o rhythm & blues, a assinatura do contrato com a prestigiada Colombia Records e os seus dois primeiros álbuns, encantadores mas ainda demasiado presos às suas grandes referências de então (escrevia como Dylan, cantava como Van Morrison, tocava como os The Band). Aterremos directamente em Maio de ’74, com Springsteen e os seus amigos da E-Street Band fechados num estúdio de noite e de dia, aspirando a fazer o melhor álbum da história do rock.
À terceira é de vez pois em Born to Run Springsteen descobre finalmente a sua voz. Bruce sentia que o programa original dos “pais fundadores” do rock’n’roll tinha ficado a meio, e agora, vinte anos depois, queria encaixar as peças em falta. Não lhe bastava que o rock tivesse nascido do ventre das classes baixas do sul profundo: negras e brancas, pobres e despojadas. Não lhe bastava a oposição implícita do rock à respeitabilidade burguesa, manifesta na rebeldia das suas formas. Era preciso ir mais longe, narrando, no próprio conteúdo das letras, as agruras e os sonhos do operariado americano.
Daí a convocação de toda uma iconografia oldie nas letras de Springsteen: os chevrolets fumegantes, as estradas sem fim, as canções do Roy Orbison no auto-rádio, as corridas ilegais de carros, as intermináveis noites de verão, a dança elegante e perigosa de navalhas de ponta e mola, a rebeldia confusa à James Dean. Era preciso voltar a contar de novo esta história, desta vez com uma consciência de classe tornada explícita. Cada um dos cinco discos operários conta uma parte dessa história, reflectindo a cada momento a relação de Springsteen com as suas próprias origens.
Neste seu empreendimento, Bruce partia com uma enorme vantagem: um ponto de vista de primeira pessoa. Springsteen retratava comunidades operárias, suburbanas e católicas a partir do seu próprio ponto de vista operário, suburbano e católico. Uma década antes, na sua fase política e pré-eléctrica, Dylan abordava já temas semelhantes, mas o seu ponto de vista era sempre de terceira pessoa: um judeu de classe média do Minnesota mostrando compaixão pelos mineiros desempregados de “North Country Blues”. Nada contra, evidentemente (ninguém escreve como Dylan!), mas a primeira pessoa de Springsteen imprime um calor na narração vedado ao seu mentor. Só alguém que crescera pobre no estado de New Jersey pode falar com aquela intimidade do que é isso de se viver num buraco no meio de nenhures, com um pai desempregado contando na mesa da cozinha as garrafas vazias de cerveja que faltavam para o dia acabar.
Em Born To Run, de ’75, Springsteen aborda esse sentimento de claustrofobia existente nas pequenas vilas do interior: o fechamento de possibilidades e o desejo de o transcender fugindo depressa dali. O tema não é novo na pop: os Animals de Eric Burdon, eles próprios provenientes do operariado de uma cidade inglesa industrial, já o tinham articulado em ’65 no seu clássico “We Gotta Get Out From This Place”. Springsteen é o primeiro a reconhecer a influência: a banda de Newcastle, aproveitando a boleia da invasão britânica, fez algum sucesso na América, proporcionando ao adolescente Bruce a primeira parte da sua educação política. Mas a sua licenciatura pop em ciência política só estaria concluída cinco anos mais tarde com a “Working Class Hero” de Lennon, outro dos seus grandes heróis. No álbum Born in the USA Springsteen dedicaria algumas linhas ao seu heterodoxo método de ensino: “fazíamos gazeta às aulas / fugíamos daqueles parvos / aprendíamos mais num só disco de três minutos / do que alguma vez aprendêramos na escola”.
Born to Run tem uma particularidade em relação aos capítulos seguintes: Springsteen não conhecia ainda o sucesso pelo que quando diz coisas como “este é o lugarejo dos derrotados / e eu vou zarpar daqui para vencer” está mesmo a falar das suas próprias ambições. Toda a alegria épica deste disco advém dessa vontade inquebrável de perseguir o seu próprio sonho.
No capítulo seguinte (Darkness on the Edge of Town, de ’78) as suas circunstâncias de vida mudam radicalmente. Born to Run fora um enorme sucesso, e, de um momento para o outro, Springsteen aparecia na capa da Time e da Newsweek. Agora que o seu sonho de infância se concretizara, era preciso geri-lo sabiamente. Muitos dos seus ídolos, Elvis à cabeça, haviam caído na armadilha da fama, ficando para sempre aprisionados nos seus patéticos palácios de cristal. Springsteen jurou para si próprio jamais se deixar apanhar na mesma ratoeira. Mais do que nunca, era preciso perceber quem queria ser e de onde provinha, mantendo e fortalecendo esses “ties that bind”.
Em “The Promise”, tema que acabou por ficar de fora de The Darkness Edge of Town, Bruce expressa admiravelmente esse sentimento de responsabilidade para com a sua comunidade de origem: “sim, eu venci / mas paguei um preço elevado / pois sinto que carrego os espíritos quebrados de todos os outros que perderam”. Darkness é o disco que chora “todos os outros que perderam”, daí o seu tom mais sombrio, mais despojado e mais abertamente político. Em “Factory” há uma celebração quase pagã da vida dura de trabalho na fábrica: fonte de morte e de vida ao mesmo tempo. Sendo violenta, maquinal e perigosa, não há meio termo possível: ou ela mata ou fortalece. “Racing in the Street” é essa bifurcação: “alguns tipos desistem de viver / morrendo aos poucochinhos / outros voltam do trabalho, tomam banho / e vão para as corridas de estrada”.
No próximo capítulo (The River, de ’80), Springsteen enquadra a consciência de classe sob uma nova perspectiva: a da constituição de família. Simplificando grosseiramente a coisa: em Born to Run as personagens fogem das suas asfixiantes hometowns, cheios de sonhos quiméricos no porta-bagagens; em Darkness as personagens acordam no dia seguinte, e tomam o seu primeiro duche frio de realidade; em The River as personagens constituem família e o dique da realidade rebenta, com a vida dura do operariado a trucidar sem dó nem piedade todos os seus grandes sonhos.
Os discos de Springsteen costumam ser uma reacção aos que o precederam, dica útil para compreendermos melhor The River. Se a tonalidade de Darkness é sombria, The River tem todas as cores da vida, das escuras da tragédia até às claras da tragi-comédia. A este respeito, é interessante contrastar a cinzenta canção-título com a garrida “Sherry Darling”. O tema pode ser o mesmo mas enquanto em “The River” este é abordado de forma solene e melancólica, em “Sherry Darling” o tom é deliberadamente grosseiro e burlesco: “todas as segundas tenho que levar a tua mãe ao raio do centro de emprego / mas ela não pára de ladrar no banco de trás / diz-lhe, por favor, para afastar as suas grandes patas do meu banco”. Se rimos com estas imagens é para não chorarmos, pois graça alguma terão os sonhos traídos pelos confinamentos de classe. Nada é mais trágico do que o sentido de humor.
Desejo e confinamento coexistem sempre em “The River”, forças em perpétua oposição. A classe social é essa barreira invisível e subtil que veda o acesso ao desejado: “you can look but you better not touch, boy”. Um refrão certeiro vale mais do que mil dissertações.
Por mais amargos que fossem estes discos, nada nos tinha preparado para a desolação de Nebraska, de ’82. Reagan estava apenas há um ano no poder mas as suas políticas de crueldade social já se sentiam bem na pele dos mais pobres. As desigualdades aumentavam, o desemprego grassava, as comunidades fragmentavam-se. Nebraska capta na perfeição o espírito do tempo, narrando o que pode acontecer a um homem quando ele é apartado da sua comunidade: animal ferido e solitário, “com mais dívidas do que um homem honesto pode pagar”, muito perigoso pois já nada tem a perder. O registo acústico e lo-fi do álbum não poderia ser mais apropriado à angústia e mágoa das suas histórias.
Em ’84, Springsteen fecha com chave de ouro o seu pentagrama operário. Born in the USA é um sucesso colossal, vendendo milhões um pouco por todo o mundo. Os seus detractores acusarão sempre o disco de facilitismo comercial mas estão redondamente enganados. Como escreveu um dia Nick Hornby: “Às vezes é difícil lembrar que o facto de haver muita gente a gostar do que fazemos não significa necessariamente que aquilo que fazemos não tem valor nenhum. Por acaso, às vezes isso pode mesmo sugerir o contrário”. A segunda investida dos cépticos é apontar o dedo ao patriotismo jubilante do álbum. Novo tiro ao lado pois o disco é do princípio ao fim uma crítica devastadora à ideia de América posta em prática por Reagan: individualista, gananciosa, implacável. Se todo o disco remete, de facto, para a ideia de pátria é sempre no sentido de propor uma América alternativa com um pouco mais de “human touch”.
Sim, é tão antiquado como isso: Springsteen nunca foi um perigoso vermelho, apenas pretendia um pouco mais de compaixão. Num momento da história americana em que a empatia pelo próximo era tão “démodé” como as calças à boca de sino, o seu pequeno gesto fez toda a diferença.