Não foi a chuvinha miúda que as nuvens cinzentas do Porto começavam a espremer que assustou o formigueiro humano que entrava pelo Parque da Cidade adentro, nesta quarta e esgotada edição do NOS Primavera Sound. Afinal, como é que qualquer quantidade de chuva podia dissuadir quem quer que fosse a deixar-se ficar por casa, com a promessa de Deerhunter, Animal Collective, Brian Wilson, PJ Harvey e Air – todos no mesmo palco, no mesmo festival? A festa arrancou ontem, com a presença dos dois primeiros e ainda com Wild Nothing, Julia Holter e Parquet Courts a animar o palco secundário.
Depois do pontapé de saída dado pelos já celebrados portugueses Sensible Soccers, encarregues de pintar os céus cinzentos com o seu sabor de krautrock nacional numa hora em que muitos ainda procuram estacionamento lá fora, o duo U.S. Girls (a solo é projecto de Meghan Remy) tinha o trabalho de manter a fasquia elevada. Falhou. Redondamente. Karaoke entregue por dois terços da pandilha Alvin e Os Esquilos tentando a sua melhor imitação de Bat For Lashes, faltou à dupla feminina o carisma, energia, instrumentos tocados e/ou cancões cativantes necessárias para considerarmos a performance um bom concerto. Um inesperado cowboy juntou-se à não-festa duas ou três vezes para nos dar solos de guitarra. No tempo de antena que demos às U.S. Girls, provou-se simultaneamente como o único elemento excitante no mesmo e tudo o que faltou no concerto: imprevisibilidade e personalidade. Para esquecer.
Depois da desilusão que as U.S. Girls tinham trazido ao palco principal do NOS Primavera Sound, impunha-se uma lufada de ar fresco, para elevar os espíritos de quem ali estava. Acabaram por ser os Wild Nothing que, com as suas guitarras tão encantadoras quanto serpenteantes, desempenharam essa tarefa. Durante a hora em que o doce indie pop ecoou pela colina do palco Super Bock, a felicidade via-se em cada sorriso e cada passo de dança que o público exibia. Jack Tatum (cérebro por trás dos Wild Nothing) e companhia não perderam tempo e, exatamente à hora marcada, abriram com o single do recente Life of Pause, a faixa “To Know You”. O teclado inicial funcionou como o prenúncio para o que aí vinha: uma malha fortíssima, movida pela energia da batida motorik e pelas guitarras. Desse notável início de concerto partiram para a canção que dá nome ao seu segundo álbum Nocturne, que deixou bastantes olhos sonhadores a perder-se no céu do fim da tarde. Depois, fizeram-se ouvir “A Woman’s Wisdom”, “Lady Blue” e “TV Queen”, do último álbum da banda, e ainda uma outra faixa de Nocturne, a belíssima “Only Heather”. Seguiu-se então “Paradise” que, estranha, etérea e mágica, protagonizou o início da melhor parte do concerto: essa faixa; a transição ambient para “Reichpop” e a festa de ritmos que essa encerrava; a recordação do primeiro álbum, Gemini, com “Summer Holiday”, em que alguns acompanharam fervorosamente Tatum no refrão; por fim, “Alien” concluía esse ciclo, com uma emocionante e intensa canção de amor. Passando ainda por “Japanese Alice” e a faixa-título “Life of Pause”, o concerto chegava ao fim ao a triunfante “Shadow”. Jack Tatum abandonava então o palco sob uma forte salva de palmas, recomendando vivamente aos presentes que vissem o concerto que se seguia. Nesse concerto, os Wild Nothing cumpriram a missão que nem sabiam ter: senão todos, pelo menos muitos saíam dali de cara lavada e felizes. Um ótimo concerto, portanto.

Ainda de lusco-fusco, os Deerhunter, a banda maravilha de Bradford Cox encarregou-se de injectar na pequena multidão que se reunia diante de si a energia necessária para aguentar o resto do festival de pé. As notas certeiras da guitarra deslizavam ao som da brisa, a voz de Cox ecoava pelo monte acima e a combinação de bongos e bateria dava às melodias mexidas o tempero perfeito para incutir no público uma vontade incontrolável de abanar a anca. A setlist encarregou-se de impulsionar aos ouvintes o mais recente trabalho da banda, Fading Frontier, lançado em 2015, tendo entre os temas mais apreciados pelo público “Breaker” ou “Duplex Planet”. No entanto, não se esqueceram de fazer a multidão cantar com eles temas mais antigos, como “Agrophobia” e, claro, “Helicopter”. Um concerto que aqueceu o coração e que prendeu quem o viu à relva verdejante.
Entretanto, no palco secundário, agregava-se uma quantidade respeitável de caras para ver a americana Julia Holter. Quem a vê a entrar em palco, com a cara escondida entre o longo tufo de cabelo, a babulciar “obrigadas” tímidos mas simpáticos, diria que é uma miúda nova por estas bandas, mas uma pequena pesquisa indicar-nos-ia o contrário. Holter já faz música pelo menos desde 2007, e o seu primeiro disco data de 2011 – no entanto, é possível que muitas das caras curiosas que por ela esperavam tivessem ali para ver serem tocadas umas quantas músicas do seu último e aplaudido trabalho – Have You In My Wilderness, de 2015. E o seu desejo foi cumprido. Julia Holter não falhou no que tocou a oferecer à plateia um concerto certinho e arrojado, focando-se precisamente no último trabalho, sendo que faixas como “Feel You” e “Silhouette” arrecadaram o maior número de palmas.

Caía a noite e chegava a hora de um dos concertos mais esperados do dia: Sigur Rós. O palco principal via-se invadido de gente, sendo que a enchente chegava até ao cimo do monte. Certamente uma curiosidade de roer as unhas culminava em todos aqueles que despachavam o jantar num ápice para assistirem ao concerto destes estranhos islandeses: o que se pode esperar de Sigur Rós?
Aparentemente, um pouco de tudo. O concerto começou com força: a bateria soava como um estrondo pela colina fora, a guitarra rugia, majestosa, e o palco enchia-se com um espectáculo de luzes impressionantes – constelações estrelares vermelhas cobriam, a certa altura, os membros da banda, como um manto, nas projecções laterais. Queixos caíram, certamente, com o nível épico de produção e com a promessa do concerto que se seguia: no entanto, os ânimos acalmaram consideravelmente depois das primeiras músicas e de uma regressão a temas mais antigos. Começou-se a ver grupos a ajoelharem-se a sentarem-se na relva, a conversar, a consultar o telemóvel, as horas… O concerto arrastou-se por mais de uma hora: nem é preciso dizer que Jónsi e companhia deram tudo de si como devem, certamente, dar em todos os concertos, pintando as colinas com a sua melancolia nórdica. No entanto, não é claramente um concerto para todos.

A hora chegara. Dentro de poucos minutos, Animal Collective entrariam em palco: arquipélagos de impermeáveis reuniam-se junto das grades, ansiosos, pelas horas e pela chuva. Diante de si, um palco já montado, prometendo um concerto em estilo de viagem – instrumentos tapados por panos coloridos, rodeados de quadros cheios de vida, estátuas de esferovite plantadas lá no meio, com caras estranhas e pachorrentas desenhadas a caneta de filtro, um pano de fundo que ostentava outra abstracção facial uniforme. Diríamos que Miró teria voltado à vida e tinha escolhido este palco para despejar a sua arte incompleta.
Pontuais, à uma e dez apresentavam-se em palco Noah Lennox (Panda Bear), Dave Portner (Avey Tare) e Brian Weitz (Geologist). Ainda acompanhando o trio nesta tournée Jeremy Hyman, baterista amigo – dos Ponytail e dos Avey Tare Slasher Flicks – encarregue de trazer ao novo disco, fortemente concentrado no ritmo, uma lufada de ar fresco. E se trouxe! A partir do momento que começou a espernear-se entre os pratos, agitando violentamente os braços e a cabeça, o público rendeu-se à sua bateria de relâmpago.
O concerto uniu esta adição surpreendente de bateria em palco à missão divina de fazer dançar, algo ao qual o trio (e por vezes, quadra) já nos habituara em disco. No entanto, ao vivo, as músicas multiplicam-se em significados: é a liberdade com a qual as esticam, cortam e colam que transforma a experiência numa aula de artes plásticas musicais. Muitas das músicas do Painting With, tal como “The Burglars”, soam completamente diferentes neste ambiente. E não só. Quando, a meio do concerto, os Animal Collective surpreenderam com o resgatar de uma música com mais de dez anos – Loch Raven, de Feels -, transformaram a melodia harmoniosa numa desculpa para abanar a anca violentamente durante vários minutos.
No entanto, há coisas que nunca mudam. Os teclados irrequietos de “Daily Routine” – outra das antigas, de Merriweather Post Pavillion (2009) – levaram o público ao frenesim, os coros da nova “Golden Gal” mantiveram o aumentaram a doçura original, e o single Floridada, pela qual a plateia ansiava, viu o refrão acompanhado por uma onda de coros respeitáveis.
Quando uma banda é tão imprevisível no seu formato ao vivo como Animal Collective, devido à experimentação intensa que fazem com os seus sons e uma tendência aparente para o fecho numa caixinha só sua, deu para dar um suspiro de alívio ao confirmar que o trio de Baltimore deu ao Porto o que será um dos concertos mais mexidos, bem-dispostos e memoráveis de todo o festival. Valeu a pena, sim.
E assim acabou o primeiro dia desta edição do NOS Primavera Sound. Há quem se fique pelo Parque da Cidade e pela frenética tenda electrónica, outros quantos rastejam até à saída do recinto à procura de uma merecida noite de sono. Sexta-feira temos Beach House, Brian Wilson e PJ Harvey – e isto só no palco principal. Obrigatório, quer faça chuva ou faça sol.
Texto: Beatriz Negreiros com Luís Marujo e Guilherme Portugal || Fotografia: Sofia Mascate