Descansadas as pernas da festa do concerto de Animal Collective e do after de John Talabot, era chegada altura de rumar pela segunda vez neste fim de semana ao Parque de Cidade do Porto. No dia de Portugal, Camões e das Comunidades Portuguesas, a sorte sorriu aos festivaleiros com um sol radioso e céu limpo, ao contrário daquilo que no primeiro dia tinha acontecido. A brisa que assobiava pelo Parque da Cidade adentro parecia arrastar o triplo da multidão para dentro do recinto à altura do segundo dia do festival nortenho. Apesar de relativamente recente (este ano completa a sua quarta edição), o festival já agregou uma fama considerável enquanto fornecedor de concertos de verdadeiras lendas da música, fazendo parte do seu catálogo passado nomes como Nick Cave, Patti Smith ou Slowdive. Por isso, não foi surpresa quando este ano anunciaram que, a pisar o palco principal neste dia 10, teriam não só Brian Wilson – o vulto por detrás e pela frente de Pet Sounds dos Beach Boys, considerado um dos discos pop mais importantes de sempre – como a sempre irreverente PJ Harvey, que celebra em palcos lusos praticamente vinte e cinco anos de carreira. O dia prometia.
Os britânicos BEAK> acompanharam o final de tarde no Palco . (ex-ATP) e o casamento entre a sua música, a hora do dia e o espaço envolvente não podia ter corrido melhor (salvo dificuldades técnicas com o PA, rapidamente ultrapassadas). O rock psicadélico fortemente influenciado pelo krautrock de NEU!, Faust ou Ash Ra Tempel deixou as cabeças dos presentes num forte rodopio. Geoff Barrow (Portishead), Billy Fuller e Matt Williams, por entre as várias jams provocadoras de expansão da mente, arranjaram ainda espaço no seu concerto para uma quase-balada que, de uma maneira subtil, se transformou rapidamente num monstro de motorik, sintetizadores e baixo. Num set equilibrado, que passou pelos seus vários álbuns, os BEAK> presentearam o público do NOS Primavera Sound com excelente concerto, deixando todos prontos para o dia que aí vinha.

O lusco-fusco arrastou uma multidão imensa para o palco principal, pois avizinhava-se um dos concertos mais esperados do festival e, possivelmente, de toda a época de festivais lusa. Era Brian Wilson que chegava ao palco, andando com dificuldade e auxiliado por membros da banda, sob uma chuva de aplausos que se prolongou até se sentar no seu trono de piano. A banda apresentava-se extensa (a dada altura, eram quatro guitarras no palco), estando plantados por todos os cantos músicos dos músicos mais experientes e talentosos de todo o festival. Mas os olhos de toda a gente estavam grudados ao senhor de cabelos grisalhos – o lendário Brian Wilson, sem quem Pet Sounds, o disco lendário que completa este ano as cinquenta primaveras, não chegaria às nossas mãos. Apesar do seu estado estático, sentando congelado ao piano, na sua ilha, tudo foi perdoado: é ele o génio que celebramos, rodeado por um oceano de instrumentos e de músicos que permitem levar à vida o icónico disco.
“California Girls” foi a desculpa para o início do concerto mais aprimorado do festival até agora: foram temas anteriores ao Pet Sounds, cujo intuito do concerto era celebrar, que contagiaram o público com o sabor a verão do oeste americano e meteram adultos e graúdos a girar as ancas e a cantar aquelas letras que toda a gente já sabe de cor: “Surfer Girl”, “I Get Around”…
Os teclados doces de “Wouldn’t It Be Nice” foram o pontapé de saída para a viagem em torno de Pet Sounds: o disco quinquagenário desenrolou-se pela ordem original: os temas soaram certeiros, enchidos de vida e de cor pelos músicos extraordinários que habitavam o palco – Brian Wilson continuava escondido atrás do piano, os seus olhos pequeninos presos num ponto distante. Mas mesmo quando mantinha a boca fechada durante longos períodos de tempo, a sua presença aqui, tão perto de nós, esse feito impossível, chegava para insuflar o coração de boas memórias para durar uma vida.

No palco ao lado, a meio do concerto, as mãos do público levantavam a ajoelhada vocalista Jenny Beth. Apontava ferozmente para aqueles que a rodeavam, num olhar sério como a morte, enquanto as suas companheiras Savages estendiam a descarga breve de selvajaria eléctrica “Hit Me” para lá dos seis minutos. Estávamos rendidos. O rock desta banda é abrasivo e ameaçador, conquanto unificador: a pertença sentida pelos presentes era mais do que palpável – por uma hora, o mundo era bateres de peito e letras berradas. Carismática e comunicativa, a vocalista mostrou quão verdadeiramente sensacionais são as novas faixas trazidas pelo mais recente registo Adore Life. O riff de “The Answer” foi recebido por uma enorme ovação, “Adore” por um silêncio sepulcral e atento, apenas interrompido pelo desejo de acompanhar o triunfal refrão. “Are you ready?”, picava Jenny antes da prodigiosa secção rítmica de Ayse Hassan – o seu baixo gutural, imponente e fluido fez abanar até o mais inerte dos corpos, nem que fosse pela forçaa com que fez tremer a encosta do Parque da Cidade – e Fay Milton – que se revela uma das mais excepcionais bateristas de rock da actualidade, incapaz de não castigar as peles da forma mais hiperactiva e bombástica possível – castigarem os nossos tímpanos com a canção reminescente da fúria Swans “Slowing Down The World”. É díficil falar, por ordem, do caos mais bem edificado que já vimos. A guitarra de Gemma Thompsom, uma serpente violenta, imprevisível e esquiva contorcia-se e entumecia-se em feedbacks e reverb de formas imprevisíveis e inventivas: “Husbands” assustou pela força tamanha, “T.I.W.Y.G.” quase matava. “Tonight’s special”, sorria Beth. E foi, realmente, especial. Por causa delas.
A noite caía, fria e húmida, e todos os caminhos pareciam dar ao palco principal: ocupar o pódio de Brian Wilson não seria tarefa fácil para um comum mortal, mas aqui fala-se de PJ Harvey. Numa outra esfera, o palco Pitchfork esvaziava graças ao cancelamento de Freddie Gibbs, que deveria tocar à mesma hora, mas que ficou retido em Paris devido a acusações de violação. No entanto, a lenda da música alternativa britânica prometia salvar a noite, pintando o palco com os seus ambientes de negrume e feitiço, movendo-se entre a sua banda com a graça de uma ninfa flutuante, pegando e deixando o saxofone, durante um concerto que chegou a durar cerca de uma hora e meia. PJ Harvey anda pelos palcos com uma confiança que deixaria muitos músicos invejar: e o público respondeu-lhe com visível entusiasmo. A viagem passou por faixas do recente The Hope Six Demolition Project, assim como o regresso a temas mais antigos, como “When Under Ether”, de 2007, ou “50ft Queenie”, já do século passado. Um concerto místico, para sentir ou de olhos fechados ou de mãos ao alto, que acabou por ser um dos pontos altos do festival até agora.

Enquanto os americanos Tortoise iluminavam o Palco . de tons púrpura, os Beach House cumprimentavam a madrugada com os seus sintetizadores de rebuçado. A já celebrada banda de dream-pop, oriunda de Baltimore, fechou as celebrações no palco principal com um concerto bonito e certinho, a embalar a multidão que assistia a versões de variadíssimos temas – incluindo alguns clássicos da banda, como “Myth” e “People”.
Assim se fecha mais um dia de NOS Primavera Sound, completo com a presença de verdadeiras lendas musicais – como PJ Harvey ou Brian Wilson – de nomes do culto indie como Beach House ou Savages – ou surpresas agradáveis como Tortoise ou ainda os elétricos Protomartyr. Aproxima-se o dia final, que certamente fechará em grande esta edição do festival.
Fotografia: Sofia Mascate