Em Carnage, Nick Cave pega no discurso musical dos seus discos anteriores, mas recupera um pouco do perigoso selvagem do qual já tínhamos saudades.
Aos 30 segundos de “Hand of God”, que abre o disco, aquilo que parecia ser uma linear melodia bonita dá uma volta completa sobre si própria e mostra-nos algo twisted que acabou de acontecer, e que só sabemos que irá piorar e que será certamente interessante. Bem-vindos a Carnage, o novo disco de Nick Cave com umas valentes pitadas do universo de David Lynch.
Tal como todas as nossas vidas, também a de Nick Cave se encontra num limbo. Não apenas por esta interminável pandemia, mas porque o próprio músico assumiu que, com Ghosteen, de 2019, havia fechado um capítulo, neste caso o terceiro capítulo de uma trilogia temática iniciada com Push the sky away, de 2013, e continuada em Skeleton tree, de 2016.
E é nesse campo aberto, após esse capítulo encerrado, que tem de ser lido Carnage, o disco nascido um pouco do nada, pela primeira vez em parceria assumida de Nick Cave e Warren Ellis, o produtor e multi-instrumentista que tem vindo a conquistar um papel cada vez mais importante na vida e no trabalho dos Bad Seeds. Os dois são companheiros de longa data e têm trabalhado em todo o tipo de projectos, com destaque para várias bandas sonoras nos últimos anos. A química está lá, a pandemia fez parar tudo. A criação, entre os dois homens, aconteceu.
Na verdade, este não parece ser o início do tal novo capítulo, mas sim talvez algo entre essa trilogia de lenta devastação e o que virá a seguir. Encontramos vários pontos em comum: pouco interesse em perseguir uma estrutura convencional de canção (a excepção é a faixa-título e o encerramento, com “Balcony man”), em favor de temas menos estruturados e que se vão desenrolando ao som dos versos de Cave; a presença de sintetizadores e de instrumentações menos assentes no clássico piano/guitarra/baixo/bateria; e um geral ambiente de perda e de desespero.
A diferença aqui é que Cave soa menos derrotado e mais selvagem, voltando a encarnar, aqui e ali, a voz de personagens perigosas e alucinadas do passado, sobretudo na primeira metade do disco, o mais selvagem, menos cordeiro de Deus e mais lobo mau. As letras habitam o universo típico de Cave, histórias de perda, desespero, medo, amor e busca pela redenção. Não se encontrando necessariamente um fio narrativo forte, as canções são mais exercícios de estilo com narrativas individuais, permitindo ao cantor tanto encarnar num homem apaixonado como num delinquente sanguinário no tema a seguir.
Poderia pensar-se que, em registo de duo, o disco soasse eventualmente mais despido, mas não é isso que acontece. Ellis é um mago nos arranjos e nos vários instrumentos que domina. Carnage tem um som impecável e está carregado de pormenores, coros femininos – desde ao doce ao estilo do trágico coro grego – , electrónicas que vão do subtil ao namoro com o industrial, sintetizadores etéreos, jactos de guitarra distorcida, enfim, todo um arsenal de elementos que dão sempre algo a descobrir em cada nova audição.
E está aqui talvez o problema, a audição. Carnage é uma obra arrojada e muito bem feita. Mas não é um disco que, realmente, dê vontade de ouvir uma e outra vez.
Nos últimos largos anos, os fãs de Cave têm caminhado emocionados ao seu lado no luto que este tem feito nos seus discos, aplaudindo cada novo trabalho como mais uma obra-prima de profundidade e honestidade de um homem que escolheu não apenas abrir a sua ferida ao mundo, mas escarafunchar nela perante os nossos ávidos e mórbidos olhos. Este percurso, que terá terminado no magnífico Ghosteen – o segundo melhor disco de 2019, para a redação do Altamont,- com a sua progressão lenta e arrastada, percorre uma fina linha entre o brilhante e o aborrecido, entre o profundo e o hermético, entre o genial e o pretensioso.
Carnage não é, como dissemos há uns parágrafos, uma verdadeira partida desse universo. Vai buscar lá atrás algo do Cave perigoso e selvagem de que temos saudades, mas não se afasta musicalmente assim tanto do que o precedeu.
Os fãs da trilogia do desespero dirão, como sempre, que é uma obra-prima. Nós não iremos tão longe. É um disco muito curioso e bem construído de uma figura mítica, mas não temos a certeza se temos vontade, uma e outra vez, de passar mais 40 minutos a ouvir um louco torturado a falar da sua dor e da esperança na redenção do amor e de Deus.
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