Poderia pôr-me a falar de quando ouvi o “Smells Like…” pela primeira vez, poderia mentir e dizer qualquer coisa como “finalmente surgia uma música feita para os desadequados da vida como eu”, mas nem os meus pais pais eram divorciados (na altura) nem eu fumava charros (na altura), nem sequer tinha sonhos eróticos com pichas (na altura), no entanto o “Smells Like…” teve um grande impacto em mim. Assim como o primeiro álbum dos R.E.M. que possuí ou o cd dos pseudo-punk-do-surf NOFX que ouvi em repeat anos mais tarde – isto só para dizer que às vezes exageramos.
É cliché falar-se no teste do tempo como método de aferição de qualidade ou real interesse, mas temos de admitir que 1)é um método bastante fiável e que 2) o Nevermind não passa este teste.
O quê??!! Heresia!
Sim, é um álbum cheio de músicas pop/rock tremendamente eficazes mas masterizadas aparentemente pelo cabeleireiro do Jon Bon Jovi. O double tracking da voz de Cobain chega a ser doloroso, por exemplo (onde é que já se ouviu double track vocal na história do punk?), tal como uma certa ideia de limpinho, como se cada instrumento estivesse a tocar separadamente do todo, como aqueles arranjos dos órgãos electrónicos. E realmente tive na altura a sensação de que apenas percebi Nirvana com a audição do Bleach.
Mas por que me dou ao trabalho blasfémico de comentar o Nevermind? Porque me parece que nele está encapsulado o triste destino de Cobain – que desde já classifico de tragicamente genial, para que não se pense que sou ateu e se continue a ler este texto.
O que Cobain e Nevermind trouxeram ao mundo em 1991 não foi “a voz de uma geração” mas sim a representação de uma iconografia fashion diferente da regente. Admitamos: Cobain era perfeito. Bonito, carismático, frágil, contrastando essa inerente poesia com a dureza dos power chords canhotos. E tudo surgiu na altura certa. Sobretudo por isto o adorámos. Ninguém imagina os Nirvana terem o sucesso que tiveram se o Cobain se parecesse com este gajo.
Eu sei o que estão a pensar: este Cisto é um idiota que gosta de irritar a malta da mui boa musica indie. Mas sejam sinceros convosco mesmo. O Cobain foi um ícone pop e isso significa que não o veneramos apenas pela sua música. No que me diz respeito, o seu sucesso fez com que pela primeira vez eu me sentisse bem no meu corpo de magricelas. Usei all-stars e calças rasgadas. Até comprei um pedal para a guitarra eléctrica igual ao dele e amigos meus oxigenaram o cabelo (eheh). Tudo à sua volta do ponto de vista estético fazia sentido e libertou-nos definitivamente da moda neoliberal dos anos oitenta. Cobain não se coibiu em se mostrar andrógino, promoveu bandas desconhecidas e escolheu para quarto membro um afro-americano, coisa rara (misteriosamente) no so-called rock alternativo. A sua morte trouxe-nos lágrimas e houve até adolescentes que se suicidaram de seguida. Dezenas de livros foram escritos acerca da sua relação com a Courtney, etc.
No entretanto, após a áspera e curiosa amalgamação do Incesticide (de referir que ouvir o “Dive” foi para mim uma lufada de ar fresco em relação ao Nevermind e ainda continuo hoje em dia a DIVE DIVE DIVE DIVE IN MEEE) os Nirvana lançaaram apenas In Utero, que não hesito em classificar de obra-prima e que ciclicamente escuto (vou até mais longe e revelo que já fiz amor grunge inesperado ao som de “Serve the Servants” – sim, eu não duro muito mais do que uma canção pop). Por essa altura Cobain deveria estar um farrapo emocional. Não me parece que se divertisse nos concertos, muito menos quando fãs trogloditas invadiam o palco. Apenas a heroína o fazia continuar, admitidamente. Imagino-o a entrar num hotel Ritz qualquer e a achar que tudo aquilo estava errado, um sonho disforme e absurdo. Imagino que tenha sentido o peso de ter uma legião de seguidores pelas razões erradas.
É muito dificil para nós, portugueses, analisar os fenómenos sociológicos americanos, que são extraordinariamente (e felizmente) distintos dos nossos. Mas, curto e simples, a America é fucked up e ter este tipo de sucesso lá significa ter de responder pelas regras do jogo.
Isto leva-me portanto ao inicio: o Nevermind foi um erro com consequências trágicas e que ainda hoje muito lamento. Não fosse esse álbum e estou convencido de que teríamos ainda hoje Cobain a improvisar com Jim O’rourke ou Steve Shelling numa sala pequena algures pelo mundo, para nossa delícia.
Poder-se-á pensar que apesar de algumas ingenuidades o valor do Nevermind é inestimável uma vez que abriu portas a uma panóplia de outras bandas que nos chegaram pelo radio ou TOP+, abandonando para todo o sempre a musica merda que invadia o mainstream. Só que isso não é verdade. Não só a musica mainstream que se seguiu e segue é a mesma merda de sempre; como aquelas bandas que nos foram dadas a conhecer talvez através de Nirvana (Melvins, Sonic Youth, Butthole Surfers ou mesmo o simpático Daniel Johnston, etc) chegariam a nós de qualquer modo, mais cedo ou mais tarde, e se exceptuarmos os medianos e efémeros Bush ou Silverchair, não houve nem há nenhuma banda de grande relevo que proclame que a sua maior influencia é o Cobain.
Isto não retira a importância de Nirvana; apenas afirmo que o mainstream é intrinsecamente perverso e, do meu ponto de vista, irrelevante. O In Utero vendeu 3.58 milhões de copias. O Nevermind, mais de 30 milhões.