Neil Young sempre foi um homem de várias faces, durante a sua carreira de cinco décadas. Uma dessas faces, que foi reaparecendo ao longo dos anos, foi a sua intervenção política, que ao contrário do que sucedeu com outros – como Dylan – não se cingiu à canção de protesto. O músico canadiano é um activista, e a música é apenas uma das formas que encontra de passar a sua mensagem e tentar fazer a diferença nas causas nas quais acredita.
Agora, em pleno 2015 e com Young à beira dos 70 anos de idade, não é ainda altura de abrandar, ou deixar que os anos longos da sua vida amaciem a sua mensagem. Não. Neil Young está preocupado. Mais do que isso, está zangado, e por isso decidiu agir, fazendo o seu disco mais político desde os anos 70.
O disco em causa é The Monsanto Years, assim baptizado com o nome da gigantesca multinacional da agricultura e das matérias-primas, a razão que levou Young a regressar ao estúdio, em protesto. A Monsanto é provavelmente uma das empresas mais relevantes e mais odiadas do mundo (Manu Chao, por exemplo, anda há vários anos a correr mundo dando concertos de apoio aos activistas que enfrentam a companhia). O motivo é simples: a Monsanto é a principal campeã dos alimentos transgénicos, geneticamente modificados. Pior, nos últimos anos, tem vindo a patentear com sucesso inúmeras espécies de sementes que, muitas delas, existem há séculos. O resultado é simples mas assustador: com esse movimento fica com o direito a impedir culturas disseminadas pelo mundo desde sempre, por ser agora “dona” das sementes, obrigando os agricultores a comprar os produtos da Monsanto e a seguir os seus ditames.
Para The Monsanto Years, Young voltou a deixar nas boxes os seus velhos companheiros de estrada e de alguns dos seus melhores discos, os Crazy Horse. Desta feita, não trabalhou a solo, optando por dar até créditos de autoria a uns tais de Promise of the Real, nada mais nada menos que dois filhos de Willie Nelson, outra lenda (felizmente) viva da música americana. O som é directo e sujo como tantos discos com os Crazy Horse, embora talvez com menos pujança. Mas já lá vamos.
O que interessa neste disco não é tanto a música, estranhamente. É um disco de combate, ideológico e feroz.
As hostilidades abrem com “A New Day For Love”, com Young, com a voz em esforço por trás do seu habitual som monstruoso de guitarra eléctrica, a cantar “It’s a bad day to do nothing, with so many people needing our help, to keep their lands away from the greedy, who only plunder for themselves”. Está aqui o manifesto do disco.
O segundo tema é “Wolf Moon”, guitarra acústica, steel guitar e harmónica. Território familiar para Young, claro, reminiscente da doçura de Harvest Moon, numa balada hippie de agradecimento e homenagem à natureza, cada vez mais ameaçada.
“People Want To Hear About Love” liga de novo a electricidade, usando a ironia para explicar a necessidade de falar de coisas desagradáveis. Não falemos da matança dos peixes nos oceanos poluídos, não falemos da corrupção dos políticos pelas grandes empresas, não falemos dos pequenos agricultores e trabalhadores esmagados pelas grandes cadeias. Nada disso. As pessoas querem canções de amor, e é isso que Young explica que recusa a fazer, nesta altura.
Segue-se “Big Box”, uma espécie de trave-mestra do álbum, com os seus intensos oito minutos de duração. O tema é a corrupção, os grandes conglomerados que gastam fortunas em campanhas de marketing para fingir que têm sentimentos. “Too big to fail, too rich for jail”, é o slogan central.
Mas não é apenas a Monsanto a sentir a ira da pena de Young. “A rock star bucks a coffee shop” vê o septuagenário atacar frontalmente a Starbucks, cadeia de café com relações próximas com a Monsanto, cujos produtos alegadamente privilegia, em detrimento dos pequenos produtores locais. A própria Starbucks, em reacção, veio afirmar as suas boas práticas (demonstrando que tem sentimentos, como o próprio Young previra numa outra canção) e afirmar que, apesar de respeitar Young como artista, deixaria de passar as suas músicas nas suas lojas. Young agradeceu.
“Workin Man” é a história de um agricultor que, devido às novas leis aprovadas que protegem a Monsanto, foi processado por violação de patentes das sementes que sempre utilizara, e deixou de ter escolha sobre o que devia cultivar, com o que alimentar os seus filhos.
“Rules Of Change” baixa a rotação mas a mensagem é a mesma, que as pessoas devem ter a liberdade de cultivar o que querem e como querem, e que nenhuma empresa o deve poder impedir.
O penúltimo tema é o que dá nome ao disco, “Monsanto Years”. Ao longo de quase oito minutos, o músico desfila, com calma e intensidade, os pecados da empresa, os efeitos de uma mudança potencialmente global e estrutural da sua actividade, a colaboração de políticos corruptos que permitem a aprovação de leis que desrespeitam a terra e a forma como ela sempre foi utilizada para alimentar a humanidade e os animais.
O disco encerra com “If I Don’t Know”. Aqui, Young admite a possibilidade de quem o vê o olhar como um velho que não sabe o que diz e que é um sonhador lírico condenado ao fracasso. É mais um lamento do que uma acusação.
Monsanto Years não é um disco que, musicalmente, vá ficar na história da carreira deste monstro chamado Neil Young. É um álbum com um propósito, de denúncia de um problema. O grito de um homem, um velho hippie idealista nascido e crescido à sombra dos ideais dos anos 60, que não admite ver o que está a acontecer e simplesmente não fazer nada e cantar canções de amor ou fazer digressões de “greatest hits”. Não é que a música seja má, longe, muito longe disso. Apenas os Promise Of The Real não têm ainda a mesma carne nos ossos, as mesmas rugas nas faces, que os Crazy Horse, que conseguem transformar em colossos estes tipo de discos de Young, gravados rapidamente e praticamente ao vivo. Curioso como Young, que lançou o sistema de escuta e reprodução de música Pono por estar descontente com a qualidade do mp3 e dos sistemas de streaming (é por isso que mandou retirar a grande maioria dos seus discos do Spotify, entre eles este último…), continua alegremente a gravar discos onde a produção sonora é praticamente ausente, soando sempre como uma boa e velha banda de rock n’ roll a tocar na garagem (isto é um elogio).
É um disco relevante, muito relevante, numa época perigosa da nossa sociedade colectiva, nesta coisa cada vez mais globalizada chamada Planeta Terra. E é um álbum que, prestando atenção às letras, ganha uma dimensão e uma pungência que não possui se apenas o ouvirmos no carro ou enquanto fazemos outra coisa qualquer.
É um manifesto de um homem que se recusa a portar-se bem, a calar-se e a calçar os chinelos junto à lareira. Uma ode à liberdade e à resistência, um disco que oscila entre o anti-capitalismo e a ideologia libertária que até faz sucesso junto dos extremistas republicanos do Tea Party. E uma grande carta de amor, como tantas outras que Young já escreveu, à natureza, aos mares, às florestas, aos animais.
Velho hippie? Sim, talvez. Deus o abençoe por isso.