Jason Williamson, a voz zangada dos Sleaford Mods, arranjou de novo sarilhos, ao advogar a morte de Boris Johnson, o excêntrico presidente da Câmara de Londres, uma espécie de Donald Trump (até no penteado) com puro sotaque da escola de elite Eton. Questionado recentemente sobre essa tirada, Williamson respondeu de uma forma que serve na perfeição para ilustrar quem são estes Sleaford Mods: “Sim, provavelmente seria bom se ele morresse, pensando bem no assunto. Ele é o tipo de gente que me condenou, a mim e aos meus antepassados, a empregos de merda e a habituarmo-nos a não sermos nada e não servirmos para nada a não ser servir os Boris Johnsons desta vida”.
Williamson, ele próprio um funcionário público pouco relevante durante muitos anos, só agora escapou da rotina das nove às cinco (que ele aproveitava para ir escrevendo as suas letras de frustração e denúncia social, em vez de servir o povo inglês). O disco anterior, o fantástico Divide and Exit, do ano passado, levou este duo de Nottingham a sair da obscuridade e a correr a Europa a dar concertos. Ah, e houve outra mudança. A imprensa mainstream deu-se conta da existência destes labregos zangados e do manancial de polémicas que a sua música crítica e ofensiva poderia dar, e nunca mais os largaram.
A segunda parte do duo é Andrew Fearn, o músico que trata da parte instrumental que serve de cama à diatribe furiosa de Williamson. E é este, na verdade, que interessa, é esta a alma da banda.
Face ao álbum anterior, dois raciocínios vêm à mente, na comparação. O primeiro é que a fórmula batida e baixo + voz rápida e zangada por cima apresenta algumas limitações. A base musical de Fearn – que nos concertos vai deambulando pelo palco bebendo uma lata de cerveja só se dirigindo ao pequeno PC de vez em quando – lembra, por vezes, o minimalismo e a urgência de uns Death from Above 1979, com algumas das qualidades e dos seus defeitos. O segundo raciocínio relevante é que, neste novo Key Markets, a banda tenta diversificar um pouco, lutando contra as limitações da fórmula primitiva que os fez sair do gueto.
Por um lado, Williamson faz o impensável, parece tentar cantar. Estranhamente, o ambiente não muda assim tanto, até porque o seu cântico parece mais um slogan de uma claque de hooligans do que um vocalista a tentar efectivamente soar melodioso. Ou seja, a personalidade mantém-se. Um exemplo é “No One’s bothered”, óptimo single de avanço do disco (batida chapa 5, Sleaford típico, mas uma voz cantada, a tal novidade). Em “Silly Me”, ao “canto” junta-se outra novidade, desta feita no ritmo. Este mantém-se maquinal e minimal, mas torna-se mais lento, trazendo ecos de Tricky e dando mais espaço às palavras. O ritmo de débito de palavras de Williamson é o que faz desta banda o que ela é, mas torna-se impossível de acompanhar para quem não é inglês de nascença. Em “Arabia”, Fearn decidiu arriscar um tom musical mais exótico, mas a coisa soa ao que um agarrado ao cheiro da cola de Salford com um PC caseiro conseguiria fazer. E isto, que parece uma crítica, não o é. A força dos Sleaford é esta: são gajos normais dos subúrbios, que se recusam a fazer o óbvio, depois do sucesso. Isso seria aumentar a banda, nem que fosse para os espectáculos ao vivo. Nada disso. São sempre dois no palco, Fearn aluado e não parecendo nada empenhado em fingir que está lá a fazer algo de importante (seria o DJ menos activo do mundo), e Williamson de microfone na mão a cuspir-lhe para cima as angústias da vida.
“Tarantula Deadly Cargo”, mais lenta e carregada, dá outra pista por onde os Sleaford Mods poderão encontrar novos caminhos para fugir à armadilha da fórmula simples que encontraram: há ecos de pós-punk, que servem de bom suporte à entrega mais calma e quase spoken-word do vocalista.
Quanto aos temas, aquilo a que já estamos habituados, e adoramos. Crítica social feroz e hilariante, visando o mundo das poses-selfie de hoje em dia, a ainda hoje intensa estratificação social de Inglaterra, a imprensa sensacionalista, os conservadores, as celebridades de faz de conta, os donos do mundo. Os heróis dos Sleaford são os tipos com quem eles bebem no pub da terrinha. Aquilo que os distingue é a banda ter, na pena, na voz e na atitude de Williamson, um representante letrado e substancial, mistura de Sean Ryder com Johnny Rotten, rei deste hip-hop punk sem guitarras.
Tal como dissemos há um ano, os Sleaford Mods fazem alguma da mais relevante e vital música que se pode escutar hoje no Reino Unido. Porque atacam sem dó quem merece ser atacado, porque trazem de volta os discos como forma de luta política e porque, francamente, não há ninguém tão genuíno, tão assertivo e tão sem peneiras a fazer o que eles fazem.
Um disco depois, tudo isso é verdade. As dúvidas que haviam – como podem eles crescer vindo de uma fórmula tão simples e tão limitativa – dissipam-se um pouco com Key Markets, mas não totalmente. Continua a não ser líquido que as músicas se distingam todas facilmente umas das outras, correndo o risco de deixar de causar efeito após vários discos seguidos no mesmo tom. Há aqui pistas, sim, mostrando que o caminho pode evoluir sem estragar a base. Mas não é fácil, nem o desafio foi ganho totalmente com este álbum (o tira-teimas, neste capítulo, será o próximo).
Seja como for, as boas notícias superam claramente as dúvidas. O sucesso não amoleceu Williamson e Fearn. Nada está a salvo e os Sleaford continuam a ser os únicos a fazerem de forma convincente este som duro e minimal, que parece suburbano (e é) mas que talvez seja o mais moderno de todos.
Que continuem a bater-lhes forte, por muitos e bons anos.