Com mais de 30 discos e perto de 50 anos de carreira, Neil Young é tudo menos uma peça de museu. Continua activo, continua controverso, continua vivo. Um dos muitos paradoxos da sua vida é o facto de ao mesmo tempo ser um maravilhado pela tecnologia e um adepto dos bons velhos tempos em que uma guitarra acústica e uma voz magoada era tudo o que era preciso. A obsessão tecnológica de Young levou-o a praticamente arruinar-se com o o desenvolvimento do melhor carro eléctrico do mundo e, mais recentemente, à invenção do Pono, um leitor portátil de música destinado a destronar os iPods de todo o mundo, prometendo uma qualidade de som incomparável, algo que o artista de origem canadiana considera essencial para “resgatar a forma de arte que pratico há 50 anos”, nas palavras do próprio.
Daí que seja impossível conter a estupefacção: como pode o homem que grita há anos contra a fraca qualidade sonora dos mp3 e que inventou o melhor leitor de música de sempre fazer, em 2014, um dos discos mais low-fi de sempre em termos de qualidade sonora?
É Neil sendo Neil, e Deus o abençoe, mais uma vez, por isso.
A Letter Home é, na prática, uma conspiração entre Young e o seu amigo Jack White, ele próprio um devoto explorador do analógico, da velha forma de fazer as coisas e dos clássicos da música norte-americana. Na loja da sua Third Man Records, em Nashville, White tem um artefacto que despertou a curiosidade de Young: uma cabine de gravação directa para vinil, uma “Voice-O-Graph” de 1947, que ainda funciona. Era, sobretudo, uma atracção de feira: os visitantes metiam umas moedas e gravavam-se a cantar ou mesmo só a falar, e levavam para casa um vinil dessa sessão, como recordação. E foi nessa velhinha cabine que Young gravou, na totalidade, este A Letter Home. Mas o conceito vai ainda mais longe. Young tocou e gravou tudo, directo e sem overdubs, naquela cabine, como se mandasse uma missiva à sua mãe, Edna Young. A primeira faixa, aliás, é uma coisa arrepiante: Neil falando directamente com a sua mãe, falecida em 1990, naquela “máquina que o meu amigo Jack tem, e que permite fazer isto”. Nesse “A letter home intro”, Neil fala à mãe das saudades que tem, dos tempos em que era criança e viviam em Winipeg, no Canadá, das conversas que tinham e das músicas que ouviam, antes do jovem ir para os EUA tentar a sua sorte enquanto músico. Essa introdução, esses pouco mais de dois minutos, ditam o arrepiante tom de todo o disco.
O material, esse, consiste exclusivamente de versões de outros artistas, desde consagrados como Bob Dylan, Springsteen ou Willie Nelson a autores mais obscuros. Young explica, a meio do disco e falando de novo com a sua mãe, que o seu amigo Jack havia conseguido descobrir muitos desses discos do antigamente. E as músicas são, na prática, capítulos da longa carta que Neil escreve à sua mãe, e manda para casa. Uma carta para casa.
A constante em todos os temas é a voz e a guitarra acústica de Young; de vez em quando, a sua velha harmónica e o assobio; num dos temas, coros por Jack White; e noutros dois, a porta da cabine ficou aberta para que se captasse o próprio White a acompanhar a gravação, ao piano. Ouvindo o disco, podemos imaginar esses momentos, a solenidade da cerimónia, o prazer de gravar aqueles velhos clássicos assim, à primeira. O que ouvimos na voz de Young é a sua comovente fragilidade, o seu enorme respeito pela sua arte e pelos temas que veste como seus, as saudades dos pais e de outro tempo, não necessariamente mais fácil, mas certamente mais simples.
A questão do low-fi tem a ver, obviamente, com a forma de gravação, da velha cabine. Soa a um daqueles velhos discos de vinil com muito pó encrustado em cima, com a “fritura” demasiado audível para que possamos considerar aceitável a qualidade da gravação. É verdade. No caso deste disco, é algo que começa por fazer impressão, a que de seguida nos habituamos, até que terminamos rendidos, porque traz a estas canções a ferrugem, as rugas e as cicatrizes da longa batalha que elas, e o próprio Young, travaram contra o tempo, e contra o esquecimento.
O disco ouve-se bem de uma ponta à outra, sem grandes oscilações de estilo ou de qualidade. Temos temas conhecidos como “Crazy” ou “If You Could Read My Mind”, que Young leva de volta às raízes. Mas gostaria de destacar duas outras canções: “Girl From the North Country”, de Dylan, e, sobretudo, “Needle of Death”, de Bert Jansch. Young vive há décadas obcecado com este tema, tendo usado a temática como inspiração para o seu clássico “The Needle and the Damage Done”, por exemplo. Aqui, volta à questão da droga – nomeadamente a heroína – como fuga de homens magoados, ele que tantos bons amigos perdeu para essa batalha. É um momento em que a voz de Young mostra tudo do que é capaz; não em volume, não em intensidade; em sentimento, em profunda dor e convicção daquilo que está a dizer.
O 34º disco de Neil Young não lhe vai trazer nem mais um novo fã. Para mim, que sou admirador há quase 20 anos, só me faz amá-lo e respeitá-lo ainda mais. É Young a contar a sua história e parte da história da música folk norte-americana, preservando alguns dos temas que estavam perdidos no tempo.
Certamente haverá discos que venderão muito mais; poderá até haver melhores discos; mas tenho sérias dúvidas que, em 2014, encontremos outro objecto tão especial e tão seriamente comovente como este A Letter Home.