Em 1969, a banda Mutantes (agora grafada assim, sem o artigo Os) lançou o seu segundo longa duração. Depois de terem tocado pela última vez com Caetano e Gil na célebre e polémica atuação da boate Sucata, no Rio de Janeiro, o grupo continuou o seu percurso musical com a gravação de um novo álbum homónimo. Audível nele é, de novo, a capacidade de tudo misturar, de continuar a inventar uma identidade à prova de qualquer abanão, uma vez que de abanões, estremecimentos e comoções eram eles pródigos, e quanto mais existissem, melhor. Com um repertório mais centrado na produção do trio Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee, o disco foi mais um passo rumo ao esplendor psicadélico que teimavam em perseguir. E, uma vez mais, são várias as canções de superioridade inquestionável produzidas, sendo que “Fuga nºII” talvez seja a que mais se destaca. É uma espécie de continuação tropicalista de “She’s Leaving Home”, dos The Beatles, e prende-se aos ouvidos muito facilmente, neles perdurando para sempre. Quem a conhece saberá bem do que falo. “Banho de Lua”, versão de “Tintarella di Luna”, canção maior do primeiro registo da cantora italiana Mina, é outro tema fantástico, um rock bem gingão, intoxicante e dançável até à exaustão. O disco, todo ele, parece feito como uma fuga à norma, sobretudo numa época em que a ditadura militar no Brasil se impunha transversalmente, e sobre todas as coisas. Há um forte sentido de diversão em todas (ou quase todas) as onze composições do álbum, e assim os Mutantes mostravam-se imaginativos como nunca e mais confiantes em si mesmos. Por incrível que pareça, o disco em causa foi gravado em apenas semana e meia. Transpira influências beatlenianas por todas as estrias do vinil, especialmente na soberba “Mágica”, embora nunca coloquem de parte a brasilidade festiva e eufórica fundadora do movimento tropicalista. Recrutam Tom Zé e com ele fazem “Qualquer Bobagem”, cantada com momentos de uma certa gaguez vocálica que lhe fica a matar. O sempre excêntrico homem de Irará deve ter gostado bastante do resultado final.
Mas comecemos pelo início, que é sempre uma ótima forma de começar. O disco abre com a medievalesca e operática “Dom Quixote”, inspirada em parte numa passagem da ópera Aída, de Verdi. Podemos sentir alguma estranheza na primeira audição do tema, mas se estivermos conscientes de que estamos no começo de um álbum dos Mutantes, então o melhor é aceitarmos como bom o caminho que nos é proposto. Eles não nos enganam nunca, acreditem. Segue-se “Não Vá Se Perder Por Aí”, uma canção que começa (literalmente) duas vezes, parecendo que nos mostra que não há engano possível, e que o caminho certo é mesmo o menos trilhado, o mais imprevisível, porque também o mais prazeroso. A letra cantada é uma excelente paródia aos jovens bem comportados (coisa que os Mutantes nunca foram), especialmente dirigida à juventude que recusa o risco, ao mesmo tempo que a incentiva a dar passos “…até um dia acertar / Mas não tenha muita pressa / Vá tentando devagar / Só não vá se perder por aí…” Maravilhosa é também a canção “Dois Mil e Um”, feita em parceria por Tom Zé e Rita Lee em homenagem ao conhecido filme de Kubrick. O sentido interpretativo dos Mutantes, tantas vezes perto da risibilidade absoluta, ganha aqui contornos delirantes. A banda contratou, para a gravação deste específico tema, a dupla caipira Rancho e Mariazinha, e o resultado não poderia ser melhor. Curiosamente, e ainda a propósito dessa fantástica canção, os Mutantes resolveram incluir nela um instrumento que a todos espantou, sobretudo nas atuações ao vivo, que dava pelo estranho nome de theremin.
Como facilmente se percebe, a banda não parava de surpreender o público brasileiro, sobretudo aquele mais audaz e mais capaz de entender que a modernidade passava obrigatoriamente por estes rapazes. Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee acabavam de subir mais um degrau rumo à eternidade.