Canção do dia

“Murder Most Foul” – Bob Dylan

Nove anos depois da última canção original, uma mensagem:

“Greetings to my fans and followers with gratitude for all your support and loyalty across the years.
This is an unreleased song we recorded a while back that you might find interesting.
Stay safe, stay observant and may God be with you.
Bob Dylan”

O maior génio da canção popular do século XX lançou uma música sobre o assassinato de John F. Kennedy, o presidente norte-americano que foi morto no ano em que saiu The Freewheelin’ Bob Dylan, o primeiro das duas mãos cheias de discos perfeitos que Dylan lançou.

Um lindíssimo hino dedicado ao presidente dos direitos civis e a toda uma geração, “Murder Most Foul” deixa-me apreensivo. Nada tem a ver com a canção, mas sim com a mensagem que a acompanha. “Agradeço a todos pelo vosso apoio e lealdade ao longo dos anos”, escreve o herdeiro de Woody Guthrie. “Mantenham-se seguros e vigilantes e que Deus esteja convosco”, conclui.

Claro que Dylan pode estar apenas a referir-se ao vírus que anda por esse mundo fora a matar milhares de pessoas e a pedir aos que o idolatram que se protejam. Mas aquelas duas frases soam-me a despedida e não estou preparado para me despedir dele se só o ano passado o descobri.

Apaixonei-me pelo Dylan há menos de 18 meses e, como sempre acontece quando nos apaixonamos, tornei-me devoto dele. Ouvi os discos dezenas de vezes, vi os filmes, documentários, li textos, ouvi os bootlegs e os discos ao vivo e li o primeiro volume das crónicas. Ri com o humor cínico, chorei com as verdades cruas e os pêlos do braço arrepiaram-se com as canções perfeitas.

Tenho receio que Dylan esteja a dizer: “Chegou a minha hora, fiquem com esta última canção por enquanto”. E que seja por isso que deixou mais uma canção perfeita, a melhor canção do ano até ao momento. Uma canção que romantiza toda uma era em que mesmo apesar dos confrontos, das desigualdades e do ódio, havia um caminho de esperança a seguir. Havia líderes a admirar e inovação a acontecer.

Mas a verdade é que nunca ninguém soube o que o miúdo do Minnesota quis dizer e ele nunca se preocupou em explicar. Bem pelo contrário. Dylan tira prazer em baralhar quem dele procura obter respostas.

Há claro as referências a Kennedy e ao seu assassinato. Lee Harvey Oswald, Jack Ruby e a frase que lhe foi dita pela primeira-dama do Texas momentos antes do presidente ser assassinado: “Don’t say Dallas don’t love you, Mr President”. Mas há também referências aos Beatles, à sua ex-namorada Suze Rotolo, a John Lee Hooker, aos The Who e ainda dezenas de outras, demasiadas para as tentar sintetizar e tendo a certeza que metade ficariam de fora por não as captar.

A mensagem por trás desta canção? A arte é menos efémera do que a vida de um presidente? A arte pouco pode fazer para salvar um servidor público que um Marine quer ver morto? Que o mundo continua muito depois de um homem morrer? É uma homenagem a Kennedy? A Oswald? A ninguém e apenas um conjunto de versos? Milhares vão tentar perceber, mas Dylan nunca o irá explicar.

Em 1963, meses antes do assassinato em Dallas, Dylan dedicou um verso a Kennedy: “Well, my telephone rang it would not stop/ It’s President Kennedy callin’ me up/ He said: “My friend, Bob, what do we need to make the country grow?”/ I said: “My friend, John, Brigitte Bardot, Anita Ekberg, Sophia Loren/ Country’ll grow”. Anos depois perguntaram-lhe se tinha sido muito afectado pelo assassinato de Kennedy, ao que Dylan respondeu: “Se tivesse sido mais afectado do que os outros teria escrito uma canção sobre isso, não é?” Pois bem, aqui está a resposta à pergunta feita em 1971. Dylan sentiu-se mesmo afectado.

Uns meses antes de morrer, o Zé Mário Branco dizia-me que já não compunha canções porque já não entendia como o mundo funcionava. Talvez seja por esse mesmo motivo que Dylan se tenha virado para os clássicos americanos. Mas “Murder Most Foul” mostra que há ainda grandes canções dentro do senhor Zimmerman. Como nunca deixou de haver.

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