Folkie e acústico como o disco de estreia, Clouds é ainda mais belo e profundo. A casa de “Both Sides Now” e “Chelsea Morning”.
No final dos anos 60, início dos 70, os cantautores intimistas regressam em força (depois da tempestade acid rock veio a bonança). James Taylor, Caroline King e a nossa adorada Joni Mitchell inserem-se nesta tradição, suave na estética e matura nas letras, muitas vezes deslindando com argúcia a complexidade das relações amorosas. Música para miúdas, portanto (os machos são sempre mais neandertais nestas coisas das emoções).
Joni Mitchell já tinha dado um ar da sua graça com o seu disco de estreia, Song to a Seagull, de ’68, produzido por David Crosby. Um ano volvido, Clouds continua a mesma estética folkie, quase só viola e voz, mas com um lote de canções ainda mais sólido. Mitchell vivia então no éden de Laurel Canyon, entre as árvores, os patos e os hippies floridos, e essa pureza pastoral é palpável nos dedilhados doces de guitarra e na sua voz cristalina.
Joni inventa para cada canção a sua afinação de guitarra pessoal e intransmissível. Debaixo de acordes – e progressões harmónicas – que não lembram ao diabo, as melodias ganham cores vibrantes, num ódio sem tréguas ao lugar comum. Se Mitchell é uma assumida herdeira do Dylan na subtileza literária transcende em muito o mestre na sofisticação musical. Os discípulos de Joni são também muitos, a começar por Kate Bush, que desenvolveu toda a sua obra a partir da estranheza mágica de “Songs to Aging Children to Come”.
Clouds tem duas canções muito conhecidas, “Chelsea Morning” e “Both Sides Now”. A primeira é mais lesta, quase dançável, apropriada ao seu tema: a alegria maníaca dos apaixonados, colorindo tudo em seu redor. “Both Sides Now” é mais serena, revelando uma sabedoria inexplicável numa miúda de vinte e poucos anos. Como raio podia já saber tanto sobre as mil matizes contraditórias da vida?
As demais canções são menos orelhudas, mas igualmente bonitas, crescendo a cada audição. O único tiro ao lado é “The Fiddle and the Drum”, uma diatribe contra a guerra do Vietname que não tem uma melodia suficientemente interessante para sobreviver à sua austeridade à capela. Assim, despida, fica só grave e enfadonha, como uma missa do sétimo dia.
A sua escrita é muito visual, talvez um reflexo de Mitchell ser também pintora (a capa é um auto-retrato a gouache). As cuidadas letras são tão pessoais que apetece ir a correr tapá-la com uma manta. Belo, idiossincrático e profundo, Clouds é um daqueles discos que eleva a pop acima da sua habitual trivialidade. Poucos terão assento nesse escarpado Olimpo. Talvez só Dylan, Cohen e a autora deste bonito disco.