The Best of Muddy Waters, de 1958, colige os melhores singles que o bluesman publicou na Chess Records entre 1948 e 1954. Uma resenha perfeita da revolução eléctrica comandada por Muddy Waters nos anos de ouro do pós-guerra.
Em 1961, Keith Richards e Mick Jagger encontram-se num comboio. Mick tem dois discos na mão, um de Chuck Berry, que Keith conhece bem, e o outro uma compilação de Muddy Waters, de que nunca ouvira falar. Seguem para casa de Mick, ouvindo o último disco em repeat, Keith siderado com aquele blues eléctrico tão autêntico. A quinta faixa tem um nome curioso: “Rollin’ Stone”…
The Best of Muddy Waters é o primeiro longa-duração do mestre do blues, compilando singles editados entre 1948 e 1954 pela mítica Chess Records. Capta, portanto, os seus anos de ouro, quando, chegado a Chicago, vindo do delta do Mississippi, moderniza o blues, electrificando-o, e tornando-o mais gingão, mas nunca traindo a verdade das suas raízes.
Sabemos bem o quanto o ambiente urbano de Chicago mudou a estética de Muddy Waters porque temos registos do antes e do depois. No início dos anos 40, o etnomusicólogo Alan Lomax ruma ao delta do Mississippi, à procura do mítico Robert Johnson. Chega tarde, Johnson já havia morrido. Alguém, porém, recomenda-lhe um “miúdo com um som parecido”, um tal de Muddy Waters, rendeiro na plantação de Stovell, bluesman – e contrabandista de whisky – nas horas vagas.

E assim acontece: Alan Lomax grava Muddy Waters para a Biblioteca do Congresso em 1941 e 1942. Podemos ouvir estas recolhas na compilação “Down on Stovall’s Plantation”, de 1966. Aqui descobrimos um Muddy Waters acústico, só viola e voz (por vezes acompanhado por um violino ou um bandolim). Um blues melancólico e rural com um travo agreste a sul profundo.
Como tantos outros americanos negros dos estados do sul, Muddy Waters participa na Grande Migração para o norte industrializado, à procura de uma vida melhor. Chega a Chicago em 1943, encontrando trabalho numa fábrica de aço e tocando blues à noite. Depressa percebe que num clube barulhento uma viola não basta para se fazer ouvir. De maneira que em 1944 compra a sua primeira guitarra eléctrica, aperfeiçoando a sua técnica slide. Muddy Waters nunca foi um virtuoso da guitarra, longe disso, mas a sua textura é inconfundível, quente e arredondada, mais algodão do que espinho. No blues de Chicago, aliás, nunca são precisas muitas notas. A verdade e o sentimento são mais do que suficientes para nos atirarem ao tapete.
A sua voz máscula transmite uma confiança quase aristocrática. Vinte anos antes de James Brown, já Muddy nos diz nas entrelinhas: “say it loud, I am black and I’m proud”. Mas nem a pujança da sua voz, nem a guitarra amplificada, chegam para conquistar a ruidosa cidade. É preciso o som cheio de uma banda. Muddy encontra então os melhores para o acompanhar: Jimmy Rogers na segunda guitarra, Little Walter na harmónica, Otis Spann no piano, Elgin Edmonds na bateria (sim, o formato ainda hoje corrente de uma banda de blues foi inventado por Muddy Waters). Esta máquina bem oleada de lama e electricidade depressa esmaga todos os adversários. O blues polido e lavadinho que antes dominava os clubes é varrido da cidade. Muddy Waters é o rei incontestado do blues de Chicago.

Falta o passo seguinte: gravar discos. É aqui que entram os irmãos Chess, donos de uma loja de discos R&B transformada em editora. Muddy assina pela Aristocrat Records (a futura Chess Records). Em 1948 sai o seu primeiro single, “I Can’t Be Satisfied”, anunciando ao mundo o novo som do blues: sujo e eléctrico. O ritmo propulsivo sugere o balanço de um comboio. A carreira de Muddy Waters a avançar depressa…
Nestes primeiros singles, Leonard Chess não permite a Muddy Waters fazer-se acompanhar pela sua banda. “Rollin’ Stone”, de 1950, é só guitarra eléctrica e voz, austera como a poeira a levantar-se no sul profundo. “Louisiana Blues”, publicada no mesmo ano, conta ao menos com a ajuda de Little Walter na harmónica – virtuosa e elegante. No blues de Chicago, o instrumento solista por excelência não é a guitarra eléctrica mas sim a harmónica. O endiabrado Little Walter – uma espécie de Hendrix da gaita de beiços – revolucionou as possibilidades do instrumento, introduzindo novas escalas e uma nova sensibilidade eléctrica e distorcida.

Se o blues rural do Mississippi tende a ser lúgubre como a vida dura numa plantação, o blues urbano de Muddy Waters é mais alegre e gingão, transbordante de sexualidade marota. Mas Muddy nunca esqueceu essa melancolia primordial (como o poderia?). “Long Distance Call”, “She Moves Me” e “Honey Bee” – de 1951 – e “Standing Around Crying” – de 1952 – estão carregados dessa tristeza ancestral (todos os instrumentos choram). Muddy nunca se afunda, porém, no desalento. Veja-se o caso de “Long Distance Call”, fintando o desânimo com um delicioso sentido de brincadeira – a guitarra e a harmónica imitando o toque do telefone.
A partir de 1953 – “Mad Love” é um bom exemplo – Leonard Chess cede, por fim, ao bom senso, integrando a banda de Muddy Waters no processo de gravação: Jimmy Rogers, Little Walter, Otis Spann e Elgin Evans colocando no vinil a sua costumeira magia.
Em 1954, Muddy Waters tem um novo trunfo na manga: as canções maiores do que a vida que Willie Dixon escreve para si. E como Dixon é um escritor de alfaiate, desenhando canções à medida, “I Just Want to Make Love to You”, “Hoochie Coochie Man” e “I’m Ready” estão ensopados na sua tusa malandra. 1954 é o auge criativo e comercial do mestre Muddy Waters, encerrando-se assim um bonito ciclo.

O seu blues afirmativo e eléctrico foi vítima do seu sucesso. Porquê? Porque influenciou decisivamente o género que haveria de o ofuscar: o rock’n’roll. A própria Chess Records cavalgou a onda, mais empenhada em publicar o novato Chuck Berry do que em investir no velho blues.
E assim seguiu Muddy Waters pela década de sessenta adentro, fora do furor dos tops, mas continuando a influenciar novas gerações de músicos. Foi o caso dos putos ingleses, com pouca melanina na pele mas muita melanina na alma, prestes a fazer uma nova revolução roqueira, a partir do legado do mestre Waters. Em 1961, Keith Richards e Mick Jagger encontram-se num comboio…