Ao terceiro disco, a canadiana Feist chegou à primeira divisão e marcou o seu território: música acessível para pessoas inteligentes e sensíveis
Leslie Feist é uma daquelas indie darlings que vai aparecendo e desaparecendo, seja através do seu trabalho a solo ou em projectos quase comunitários, como os também canadianos Broken Social Scene. Na verdade, acaba por ser um tesouro nacional do indie desse país, ainda que a sua carreira de toca e foge com o grande público tenha impedido o reconhecimento que, aqui e ali, mostrou merecer.
A maior prova é The Reminder, de 2007, o seu terceiro disco a solo, num percurso que, de alguma forma, foi subindo até atingir aí o seu pico. De uma artista relativamente osbcura da cena de Toronto (onde chegou a colaborar com Peaches) até aos grandes palcos mundiais levou alguns anos, mas parecia ter vindo do nada. De repente, Feist estava em todo o lado. Melhor ainda: muita gente conhecia as músicas deste álbum; e as pessoas fixes conheciam quem ela era.
Como sempre, tudo se resume às canções, com um ligeiro contributo do timing. Este era perfeito, aquelas atingiram em 2007 o equilíbrio que é a grande força da canadiana: consegue fazer música pop acessível mas de qualidade, sempre com algo que agrada a várias sub-tribos e sensibilidades, mas mantendo uma voz muito própria.
The Reminder foi levado ao colo por alguns singles fortíssimos que continuam a estar entre as suas músicas mais conhecidas. Mesmo quem não sabe quem é a autora, já ouviu “1234”, “I feel it all” ou “My moon my man”. Estes e outros temas acabaram por invadir as coffee-shops trendy de todo o mundo e atrair empresas, que os transformaram em banda-sonora de anúncios. “1234”, por exemplo, explodiu quando foi escolhido pela Apple para uma gigantesca campanha de promoção seu (então) revolucionário iPod Nano. A música de Feist, sobretudo a deste disco mas não só, estava mesmo a pedi-las. É agradável e acessível mas não é fácil nem descartável, tendo sempre elementos de grande elegância e sofisticação, mesmo quando são – o que acontece muito – subtis.
É claro que há, neste disco, muitos outros pontos de interesse, para além desses singles. O arranque lindíssimo e acústico dá-se com “So sorry”, ou a bucólica “The Park”, com a beleza e o abandono que comunga com Cat Power um certo pedigree indie que é delicioso. Ou a lenta sofisticação nocturna de “The Water”, marcada por teclados subtis e aquela voz que tanto é límpida como nos traz o arranhão de alguém que está vivo.
“Past in Present”, por seu lado, é o mais próximo que o disco está de um indie rock, lembrando aqui e ali os compatriotas Arcade Fire, com menos pompa e mais discrição. The Reminder é ainda a casa da lindíssima “Limit to your love”, escrita em parceria com Chilly Gonzales, e que viria anos mais tarde a conhecer uma também excelente versão por parte de James Blake. “Brandy Alexander” é outra faixa curiosa, casando uma certa estranheza inicial (cortesia dos arranjos, sempre subtis mas sempre originais) com uma lindíssima melodia clássica. Já “Honey Honey” podia fazer parte da banda sonora de um filme de Spike Jonze, enquanto o fecho, com “How my heart behaves” lembra as arpas de Bjork ao serviço de um dueto tocante.
The Reminder fartou-se de vender e levou mesmo Leslie Feist a precisar de se afastar para se situar no mundo. Desde então lançou vários discos, bem recebidos pela crítica mas largamente ignorados pelo grande público. Nunca mais voltou a atingir, desta forma, a síntese perfeita entre acessibilidade pop, bom gosto e sofisticação nos arranjos e na produção. Um disco íntimo, feminino nas suas múltiplas vertentes: por vezes festivo, por vezes recolhido, que tem dias de optimismo e outros de tristeza abandonada. Como todos nós.
Como escrevia Miguel Esteves Cardoso, sem qualquer desgosto, na sua “Escrítica Pop”, “como as borboletas, a música pop tem uma vida de três dias”. O escritor admitia algumas – raríssimas – excepções, e creio que estamos perante uma delas. A pop, arte fútil e de consumo fácil, não tem de ser fútil e de consumo fácil e, sobretudo, não tem de ser básica nem má. The Reminder é uma das provas, pronta para ser apresentada, tantos anos depois, perante o tribunal do tempo.