O ano de 1973 é de má memória para certos músicos brasileiros. A razão? A impiedosa censura do ditador Emílio Médici. Uma das vítimas desse flagelo foi Milton Nascimento. Por isso, a existência do seu sexto álbum acabou por ser um autêntico milagre.
Muitos músicos brasileiros sofreram com a censura instituída durante os anos de ditadura militar. Foi assim no Brasil, foi assim em Portugal, será sempre assim em qualquer parte do mundo. No ano de 1973, muitos e bons discos viram a luz do dia em terras de Vera Cruz. No entanto, o que aconteceu com Milton Nascimento foi particularmente penoso do ponto de vista artístico. Num álbum de apenas onze temas, apenas três tiveram direito a poderem ser executados com as letras originalmente pensadas para o efeito. É bem verdade que Milton tinha decidido, bem antes da censura entrar em campo, que cinco da totalidade das canções seriam executadas apenas de forma instrumental. No entanto, a essa mão cheia de temas, Bituca (o nome carinhoso pelo qual Milton era tratado pelos amigos) teria de acrescentar mais três. Feitas as contas, oito em onze não teriam a palavra como elemento integrante, agragador e fundamental. Em apenas três as palavras poderiam ser escutadas sem qualquer tipo de intervenção do terrível lápis azul. Como sobreviver a tudo isto? Com força redobrada, com determinação e génio, pois claro.
Milagre dos Peixes é um álbum em que a poética da voz e a qualidade dos arranjos instrumentais se fundem maravilhosamente. O trabalho de Lindolpho Gaya como diretor musical foi magnífico. A voz de Milton, aquela que Elis Regina designou como a voz de Deus, sobrevoa as canções com uma autoridade absoluta, ora quase sussurrando, ora mostrando-se impiedosa, como se quisesse revelar, apenas através do som, os sentimentos, as angústias, o peso da existência daquele tempo e daquela situação imposta, a da mudez da palavra escrita. Apesar de Milagre dos Peixes ser um dos mais difíceis discos da carreira do bom carioca / mineiro, é igualmente um dos que mais vai crescendo ao longo do tempo de audição, sobretudo se soubermos entender a sua particular singeleza e sinceridade. Alguns dos temas nele apresentados, como “Os Escravos de Jó”, “Milagres dos Peixes”, “Pablo”, “Pablo nº2 (Festa)”, “Hoje é Dia de El Rey”, e “Sacramento” tornaram-se clássicos da obra de Milton (uns maiores do que outros, é certo, mas clássicos mesmo assim) e acompanharam a carreira do músico até hoje. O oitavo tema do disco, “A Última Sessão de Música”, instrumental de uma beleza fora do comum (aquele piano é mítico!), quase parecendo uma obra inacabada, acabou por ser título da última e derradeira digressão de Milton Nascimento pelos palcos do mundo. É um tema único, de facto, cuja beleza nem sempre é fácil de entender e nem sempre fácil de explicar por palavras que retratem o seu devido valor. O ambiente de conversa de bar, com ruídos de pratos e talheres, por exemplo, é verdadeiramente mágico, sobressaindo, como se mencionou anteriormente, o piano de Milton Nascimento, que faz crescer uma simples e desarmante linha melódica que nos fica para sempre na cabeça e no coração. Esta é das que fica “no lado esquerdo do peito”, sem dúvida.
Depois de Milton e seus amigos terem gravado o mais do que histórico Clube da Esquina, álbum que marcou em definitivo o curso da então designada Música Popular Brasileira, com Milagre dos Peixes a aposta foi num álbum onde a fusão entre África e uma certa latinidade ganhariam óbvio terreno. Milton queria arriscar, e acabou por ser forçado a assumir ainda mais esse risco dadas as condições que a censura acabou por lhe impor. Fez-se um clássico, mais um clássico dos muitos da sua carreira. Um clássico, mesmo assim, diferente de qualquer outro. Único, de facto, e um irrepetível milagre sonoro!
Uma última nota para referir o seguinte: Milagre dos Peixes deu origem a um duplo álbum ao vivo (Milagre dos Peixes ao Vivo), o primeiro de sempre a ser editado no Brasil, que é igualmente extraordinário e que vale bem a pena conferir atentamente. Fica feita a observação e fica dado o conselho.
Obrigado, caro Ademaramncio. Agradeço este comentário, assim como todos os outros. É bom ser lido no Brasil. Abraço transatlântico! Continue seguindo o Altamont.
Fenomenal,o álbum e o texto!