Ao segundo álbum, os Marching Church compactam as suas canções, preferindo encontrar tensão e catarse na metamorfose dinâmica e focada do que no improviso descontrolado e na indulgência. Os resultados são surpreendentes.
Qual traça à luz, seduzido em ciclos temporais demasiado céleres, roçando o embaraçoso, o público tende a vergar-se e divinizar qualquer rapaz branco depressivo de voz distinta e carinha laroca. Elias Bender Rønnenfelt pertence a essa grande estirpe, bem-dito seja. A pose errática e o comportamento volátil capitaneados pela expressão apática e desafectada, o seu inglês brutalmente espancado pelo sotaque da natal Dinamarca no despejo arrastado e embriagado das sílabas: o magnetismo, não importa quão auto-consciente esteja ele do mesmo, é titânico.
A claustrofobia cacofónica e militarista Iceage trouxe-lhe a ribalta. O último álbum de três no catálogo da banda (Plowing Into The Field of Love, 2014) elevou-se dos precedentes em escala (seis minutos a menos do que a duração somada dos outros dois), instrumentação, melodia, sentimento, maturidade e ambição sónica. Já enamorando industrial, música ambiente e new wave com os Vår em 2013, Rønnenfelt encontrou, em 2015, nos Marching Church, a musa ideal para as suas indulgências musicais e líricas sem ponta de contenção ou restrição, por enquanto livrando-se a si e aos Iceage do 13º trabalho de Hércules que será, certamente, tentar suplantar qualitativamente Plowing Into The Field of Love.
Desta liberdade criativa sem qualquer tipo de censura – excepto do próprio Rønnenfelt, que pintou a dinâmica da banda, numa entrevista à Dazed, “tipo as Nações Unidas, [e Rønnenfelt] seria dos países com direito a veto.” – nasceu This World Is Not Enough, mescla muitas vezes certeira, por vezes enervante (o conceito a sobrepor-se à canção em alguns momentos: a versão do clássico soul “Dark End Of The Street” ou os nove minutos de “Up A Hill”) de post-punk, soul e avant-garde. Felizmente, Telling It Like It Is traz-nos uma versão mais concentrada, direccionada e menos indulgente da banda.
O Nick Cave interior de Elias Bender era já de fácil identificação nos momentos mais românticos e soturnos de Plowing e é felicíssima surpresa ver a sua influência a resvalar para outras características, até aqui, não associáveis à figura de Rønnenfelt. “Let It Come Down”, faixa que não cairia mal entre “Your Funeral, My Trial” e “Stranger To Kindness”, é um número Cave vintage – folk chorosa, melodramática e sombria, assombrada por coros femininos e cordas espectrais – onde, numa estreia absoluta, ouvimos Rønnenfelt melódico, a seguir e acompanhar a banda com o maior dos interesses em juntar harmonia à canção, abandonando a constante pose de força semi ou totalmente dissonante, ébria, sempre à margem do tom suposto. A tendência prossegue quanto às nuances não expectáveis do vocalista, mostrando enorme crescimento artístico: “Lion’s Den” acolhe falsete arrojado; “Heart of Life” um cantarolar pop rock extasiado no limiar da ânsia adolescente; “Florida Breeze” a sua versão dos uivos Robert Smith na altura de The Top.
À imagem do vocalista, uma reconfiguração ocorre igualmente na vertente sónica. A mistura é exemplar: para além de se dar um destaque ao baixo, criando neste álbum um permanente subtexto dançante nas faixas, tal anca discretamente vibrante, é dada relevância ao detalhe e à partilha democrática dos instrumentos, virando-se o holofote ao que deve ser brilhado e destacado no momento, igualmente criando o desejo de momentos mais tensos, não consequência da desarrumação dos instrumentos e o inevitável caos que daí se extraía, mas pelo desejo de criar tensão, tendo em conta que para tal se criar é preciso uma maior atenção à estrutura das canções, eliminando, para finalizar, por completo, os momentos de divagação esporádica, existentes no primeiro álbum.
Pelo trotar malévolo, sexualmente predatório do piano de “Information”; pelos breaks descontrolados de “Florida Breeze”, de onde a canção não consegue voltar senão com mais força; pelo shuffle 60s rítmico, guitarras picadas jocosas a pedir um twist de “Heart of Life”, antes desta mergulhar, sem aviso prévio, num delírio perturbador, apenas para regressar à excitação agridoce um minuto depois; pelo piscar de olho ao riff de “Wounded Hearts” dos Iceage em “2016” e pelo choradinho baladeiro, pedal steel a marcar presença, de “Calenture”, restam poucas dúvidas quanto ao progresso composicional dos Marching Church: banda de “malhas” a escritores de Canções, estas erráticas, imprevisíveis, texturadas e complexas. Lapidando uma identidade definida, não obstante a mão cheia de influências com que trabalham o seu som, os Marching Church entretêm inteligentemente em Telling Like It Is.