As Songs of Leonard Cohen são do corpo e da mente. São pedaços de arte que condensam a humanidade em dez poemas musicados. Poemas que versam sobre desejo, ambições, relações de domínio e submissão, suicídio, raiva, luxúria, ódio e amor.
Estas dez canções, baseadas em poemas escritos pelo canadiano, oferecem uma viagem pela psique de um indivíduo fascinado pela dualidade humana, em que bondade e atrocidade se passeiam de mãos dadas. Uma dualidade na qual o autor incorre igualmente, servindo estes poemas envoltos em canções como um acto de contrição. São canções saídas da cabeça de um homem que viveu 34 anos de amores e desamores, de tragédias e alegrias, mas cuja visão da vida é enublada e onde raramente se vêem os raios de sol.
Durante as gravações do disco, Leonard Cohen queria fazer-se acompanhar apenas pela sua guitarra – como um típico songwriter. No entanto, John Simon, o produtor do disco, insistiu em enriquecer alguns dos arranjos, que, ao contrário dos receios de Leonard Cohen, reforçaram a sua entrega, oferecendo-lhe uma sensualidade que nunca nenhum songwriter do continente americano conseguiu igualar. Canções como “Suzanne” beneficiaram da suavidade dos coros e da orquestração que servem de contraponto à dicção grave e sombria de Cohen. “Hey, That’s No Way To Say Goodbye” por sua vez beneficia igualmente da adição dos coros que pontuam a canção com deliciosas interjeições ao estilo do jazz. E toda a tensão criada pela instrumentação em “Stories Of The Street” oferece uma visão da cidade ainda mais aterradora do que as próprias letras.
Mas se a capacidade de Cohen para desenvolver melodias e arranjos cativantes é impressionante, é a sua poesia que lhe dá um lugar cimeiro no panteão da Torre da Canção. E, embora quando se apresentou diante do Senhor da Canção, Leonard Cohen não terá precisado de dizer nada mais do que “Hallelujah”, qualquer uma destas primeiras canções seriam um argumento mais do que válido para ser aceite nessa Torre.
Cohen era um poeta muito antes de ser um músico e, se os seus livros não chegam para o demonstrar, certamente os poemas que transformou em canções servem como documentos suficientes para o mostrar. A forma como o autor dispõe as palavras “chorar” e “rir” (“laugh and cry and cry and laugh”) no refrão de “So Long, Marianne” – a canção mais festiva e dançável de todo o disco – mostra que embora a sua relação com Marianne possa ter passado por turbulência, as memórias finais são de felicidade, daí ter terminado com risos, em vez de choro – um incrível jogo de palavras que demonstra a subtil mestria de Cohen. “So Long, Marianne” é um lindo poema com alguns dos mais ricos versos escritos em canções populares: “I forget to pray for the angels/ And then the angels forget to pray for us”; “We met when we were almost young”; “You held on to me like I was a crucifix”.
(Nota sobre “So Long, Marianne”: a canção é inspirada por Marianne Ihlen, uma mulher com quem Cohen viveu durante a década de 60 e com quem manteria uma relação até ao fim da vida. O livro de poesia Flowers for Hitler é dedicado a Marianne e uma fotografia sua aparece na contracapa de Songs from a Room. Poucos meses antes de morrer, Leonard Cohen escreveu uma lindíssima carta a Marianne, que viria a morrer dois dias depois. Aqui reproduzimos o conteúdo da carta: “Well Marianne it’s come to this time when we are really so old and our bodies are falling apart and I think I will follow you very soon. Know that I am so close behind you that if you stretch out your hand, I think you can reach mine.And you know that I’ve always loved you for your beauty and your wisdom, but I don’t need to say anything more about that because you know all about that. But now, I just want to wish you a very good journey. Goodbye old friend. Endless love, see you down the road.”)
Mas sendo Cohen uma pessoa pessimista, nem todas as canções de Songs of Leonard Cohen são alegres, como esta “So Long, Marianne”. No disco existem versos sublimes que denotam uma enorme tristeza: “I’m just a station on your way/ I know I’m not your lover” (“Winter Lady”); “And I lean from my window sill in this old hotel I chose/ Yes, one hand on my suicide, one hand on the rose (…) And now the infant with his cord is hauled in like a kite” (“Stories of the Streets”), ou toda a canção “Master Song”, baseada num poema em que o próprio autor se curva perante uma mulher e o mestre desta (“His body is a golden string/ That your body is hanging from/ His body is a golden string/ My body has grown numb”).
Mas nem tudo é negro no mundo de Cohen. As “Irmãs da Misericórdia” ajudam-no a levantar-se e elevaram-no a um plano espiritual superior, mas para isso é necessário fazer sacrifícios (“You must leave everything you cannot control”) e a experiência é de tal forma satisfatória que o próprio Cohen a quer partilhar com os outros.
Mas o ex-libris de Cohen no seu primeiro disco é “Suzanne”, uma canção de amor sobre alguém que nunca lhe pertenceu – como nunca lhe pertenceu a canção – mas que tantos quiseram reclamar para si. Suzanne é a mulher sensual, misteriosa, divertida e irresistível. A mulher que nos faz querer viajar e sonhar. Suzanne faz-nos confiar cegamente nela, até porque ela confiou o suficiente em nós para tocarmos o seu corpo perfeito de uma forma etérea – tocar o seu âmago, a sua fé. E esta canção serve igualmente para Leonard questionar a Fé. Numa das estrofes, Cohen coloca na boca de Jesus a frase “All men will be sailors then/ Until the sea shall free them” – a morte surge como uma libertação -, no entanto, até o Filho do Homem se submeteu à sabedoria de Suzanne, depois de ter quebrado na cruz (Mateus 27:46: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste”). No entanto, Leonard Cohen nunca esteve com Suzanne. Foi uma paixão puramente platónica, mas que originou uma canção que sabe a um primeiro beijo, mesmo quando repetido.
As Songs of Leonard Cohen são canções sobre a carne e a mente. O físico e o intelectual. Mas, acima de tudo, são canções sobre a vida.
E se alguma dúvida resta de que Leonard era um homem solitário, uma pequena curiosidade: quando gravou este disco, o poeta pediu que pusessem um espelho no estúdio, para que pudesse olhar para si mesmo enquanto gravava.