Em 2017 Mallu Magalhães lançou Vem, um disco maduro, cheio de retratos da vida quotidiana e de reflexões sobre memórias do passado e as promessas do futuro.
Mallu Magalhães é indiscutivelmente um dos nomes fortes música popular brasileira atual. Já com cinco álbuns a solo no currículo (fora o estrondoso disco da Banda do Mar) e com apenas 30 anos, Mallu é hoje uma talentosa escritora de canções e uma front woman quase veterana que não precisa de pedir licença a ninguém (tivemos oportunidade de comprovar isso mesmo quando a vimos este ano a abrir o palco principal do Nos Alive), para além de continuar a dona de uma das mais doces vozes da sua geração. O disco Vem, lançado em junho de 2017, marca claramente uma viragem na carreira de Mallu. Se até Pitanga, álbum de 2011, Mallu era pouco mais que uma adolescente, ainda a fazer lembrar a menina que apareceu aos 15 anos a cantar “Janta” ao lado de Marcelo Camelo, em Vem, o seu quarto álbum, temos Mallu enquanto mulher forte e independente.
Depois de uma pausa de seis anos, durante a qual teve tempo para se mudar com Marcelo Camelo para Lisboa, gravar o álbum de Banda do Mar com o marido e com Fred Ferreira, fazer uma tour e ter a sua primeira filha, Luísa, nascida em 2015, Mallu regressou aos discos com Vem, um disco cheio de retratos da vida quotidiana e de reflexões sobre memórias do passado e as promessas do futuro. Porque aos 24 anos ainda não se é bem adulto, mas também já não se é criança e esse é um estado propenso a reflexões inquietas. É uma estranha idade de transição, cheia de esperança e coragem infinita (Mallu diz na canção “São Paulo” que “não há quem segure a coragem dos meus 24”) em que queremos ter tudo sem ter de abdicar de nada e acreditamos que isso é possível, e Vem representa isso mesmo.
“Você não presta”, a primeira canção, que foi também o single de apresentação do disco, dá o mote para o que se segue de forma perfeita. Ao som de um dançante “sambinha bom”, Mallu convida-nos a todos para a sua festa onde nos diz logo não ter mistérios. De facto, Vem é uma celebração despida e despretensiosa da vida interior de Mallu enquanto esta se debruça sobre uma excitante nova fase da vida a começar e sobre todas as promessas que esta poderá trazer, sejam elas boas ou menos agradáveis. Canções como “Culpa do amor”, onde ouvimos uma guitarra a fazer lembrar Banda do Mar e a indicar o dedo de Marcelo Camelo, que produziu o disco, “Vai e vem” e “Será que um dia”, falam das pequenas adversidades do dia a dia de uma vida a dois. Sempre ao som de intrincados instrumentais, onde pequenos instrumentos de percussão e campainhas criam texturas tropicais, os poemas maturos de Mallu abordam os pequenos vícios que se criam quando se passa muito tempo com alguém e a gestão que estes requerem, bem como a necessidade de fazer compromissos e entender o outro e a resiliência que é necessária para nos podermos “convencer que vale a pena amar”.
Vem é também um conjunto de dedicatórias de amor. Mostrando bem a dualidade característica de se ter um quarto de vida, Mallu dedica neste seu disco uma canção à sua filha, “Casa Pronta”, que escreveu quando ainda estava grávida, e uma à sua Mãe, “Gigi”. Enquanto nos preparamos para ser independentes e assumir as nossas próprias responsabilidades ainda procuramos os conselhos e o conforto da nossa mãe. Outro grande amor é o Brasil, país de onde não se esquece que veio e de onde nos pinta coloridos postais na forma das canções “Guanabara” e “São Paulo”. Esta última um contagiante hino de autoafirmação e força com a sua cidade natal como pano de fundo. No mesmo tema, a épica “Navegador” mostra Mallu a navegar pela vida adulta com a sua lista de desejos marcada como destino no mapa, reforçando a sua maturidade e urgência de independência nos versos “já não preciso que você olhe por mim” e “já não tenho tempo a perder”
A fechar o disco, depois da doce “I love you”, que canta em inglês, surge “Linha verde”, canção onde junta bossa nova e fado: o país de antes e o país de agora. Ao som da guitarra portuguesa de José Manuel Neto e algures entre o Cais do Sodré e Telheiras, “Linha verde” é um belo epílogo para a história de comming of age de Mallu Magalhães. Continuando com um olhar atento sobre o que a rodeia, Mallu já não escreve sobre a baía de Guanabara, mas sobre o estuário do Tejo, porque é aí que está neste momento. Sem esquecer a primeira, quer entregar-se ao segundo com igual devoção, até porque é onde está a sua família: “Parecia uma andorinha, levando a chuva daqui. E aí em casa, a gente aninha, e a nossa filha sorri”.
Vem é um conjunto de inquietações e de dúvidas que querem ser decididas, é uma declaração de independência que ainda pede carinho e conforto, e é um disco feito em Portugal, mas impregnado de Brasil e das suas paisagens e sonoridades. Sobretudo é a afirmação definitiva de Mallu Magalhães enquanto cantautora com todo o mérito e com lugar cativo no éden das deusas da música popular brasileira.