Depois do terceiro capítulo veio o terceiro longa-duração, o conturbado Iniciação a Uma Vida Banal – o Manual. Tinha tudo para dar errado, em demasiados tabuleiros. Parece que não deu…
Pacman andava outra vez metido na fruta e isso afectou a sua voz – temas houve em que tiveram que ir repescar a pista vocal a maquetes se não a coisa não ia lá.
Guillaz não estava muito melhor, com um quase esgotamento nervoso por fazer demasiadas coisas ao mesmo tempo (trabalho, faculdade, banda, eu sei lá), auto-medicando-se com baldes de whisky e decadência rock’n’roll – contra os conselhos do seu médico -, mijando em átrios de hotéis, atirando colchões para a piscina, vandalizando suítes só porque sim, e demais clichês ledzeppelianos. Ainda assim, a depressão não amainou. Resultado: teve que ser o Alexandre Frazão a safar a bateria, Guillaz não acertava com o raio dos tempos…
Tendo o disco anterior, 3º Capítulo, sido um sucesso inesperado, disco de prata ou lá o quê, achou-se por bem contratar um produtor XPTO do Brasil, um tal de BiD, o mago por detrás dos discos de Chico Science e Nação Zumbi, um tipo bem senhor do seu nariz e com razões para isso. O problema é que Armando Teixeira também tinha narinas orgulhosas, e não estava para acatar as directrizes do super-produtor. Aquilo deu para o torto, foi por um triz que não chegaram a vias de facto.
A divergência era estética, acima de tudo. Armando não queria que manchassem os seus beats com a vulgaridade de instrumentos verdadeiros – houve ali braços de ferro danados. João (Jay) Nobre, baixista e mentor criativo, decidiu ausentar-se ao máximo do trabalho de estúdio, para não haver demasiados galos no mesmo poleiro; mas também ele tinha o mesmo desentendimento com Armando Teixeira, desejando caminhos mais orgânicos.
De maneira que O Manual é o compromisso possível entre essas duas sensibilidades: de um lado o corta e cola samples; do outro, o toca ao vivo, cuspindo nas odiosas maquinetas. Depois de o disco estar acabado, a vasilha acabou mesmo por rachar – Armando foi despedido da banda…
O curioso é que, apesar de todos estes tumultos nos bastidores, O Manual é um dos discos mais interessantes dos Da Weasel. Não inventou a roda, é uma evolução na continuidade em relação ao 3º Capítulo, mas é mais coeso – sem qualquer palha para encher – e mais sofisticado do que o seu antecessor. Os temas escritos por Armando Teixeira têm beats elegantíssimos – belo foi o canto do cisne. O guitarrista Quaresma, é justo sublinhar, também ajudou na “looparia”.
O Manual não tem malhas muito conhecidas, só o primeiro single, o frenético e roqueiro “Outro Nível” – quem não conhece o refrão “let’s go / sente o puro flow”? – é que ficou no nosso imaginário colectivo (o segundo single, a balada neo-soul “Agora e Sempre a Paixão”, não teve a mesma sorte). Mas nem só de ubiquidade vive a pop, o arrojo estético também há-de contar para alguma coisa, e ele abunda por aqui.
Veja-se o caso da claustrofóbica “O Remorso (o Que é Que se Há-de Fazer)”, transmitindo na perfeição as aflições venéreas do seu narrador. Ou a pérola film noir “O Real”, com guitarra à James Bond, e vibrafone à Milt Jackson, um elogio lennoniano à autenticidade. Já para não falar do trip-hop sombrio à Tricky de “(No Princípio Era) o Verbo” – uma ode à palavra escrita e à palavra dita. Props também para a raiva apocalíptica fin de siècle de “É Mesmo Assim o (Respeito)”, com Virgul a “rappar” com um implacável virtuosismo.
A décima-primeira é marota porque além do carismático instrumental “A Força Negra” – um rip-off descarado dos Air, diga-se de passagem -, tem faixa escondida com rabo de fora, essa instituição fonográfica que se confunde com os próprios nineties. Andem mesmo para a frente até lá chegar – o seu baixo desengonçado e o vocoder no refrão merecem a perseverança.
Pacman, por mais que estivesse enfiado então num buraco escuríssimo, deu um salto na qualidade da sua escrita, mais profunda, menos maniqueísta, atirando dardos também para si próprio com uma certeira autoironia. O flow também está rijo, com um balanço gingão, mas não é imaculado: aqui e ali tropeça no excesso de sílabas. O mesmo sucede com os versos, cada vez mais ágeis e inteligentes, mas com ocasionais rimas pueris. “O cheiro da sua pele / o seu sabor a mel / é real como um pontapé de bicicleta do Jardel”. A sério, Carlão!?
Não sendo um disco conceptual puro, há uma ideia a coser muitas pontas, a do elogio a uma vida simples e despretensiosa e autêntica, com a doçura dos pequenos nadas no lugar dos barulhos das luzes. O livrete vai no mesmo sentido, com fotografias das doninhas no seu habitat natural, como Guillaz com a gravata do trabalho e tudo…
Com O Manual encerrou-se um ciclo dos Da Weasel, quando ainda tinham Armando Teixeira a premir, feliz, botões. Fechou-se, aliás, da melhor maneira, com um disco discreto mas audaz, de fino bom gosto.
E quando um ciclo se fecha, outro começa. Amanhã a saga continua…