Há discos que parecem interessados em esconder a sua essência, insinuando-se aos poucos, aproximando-se muito lentamente dos ouvintes. Discos que nos prendem no imediato, mas que têm um tempo muito próprio para se revelarem na sua plenitude. Podem demorar meses a fazer esse elegante caminho de sedução. É o caso de Historian, de Lucy Dacus.
Historian nasceu para o mundo no início de março. Foi acarinhado pelos seus primeiros dois temas, mas depois voltou-nos um pouco as costas, parecendo não estar interessado em confianças excessivas para connosco. Terá sido, seguramente, um caso de forte personalidade sonora. No entanto, como uma espécie de rastilho iluminando os ziguezagues das nossas almas tão repletas de sons, vozes, canções e álbuns, foi florescendo aos poucos nos nossos recantos cerebrais menos óbvios. Ganhou espaço, ganhou força, fez-se inteiramente outro. Cresceu para renascer diferente, nove meses passados. Por isso nos vimos obrigados a estas palavras, logo agora que o ano já tem pouco para dizer.
Lucy Dacus é novinha. Tem pouco mais de vinte anos, embora não pareça. A voz tem peso, as palavras que a voz nos dá não têm a inocência típica das palavras das idades mais tenras, as suas canções exigem respeito. Ao segundo disco, depois de nos ter dito “I Don’t Wanna Be Funny Anymore”, a menina de Richmond cumpriu a promessa e fez um álbum sobre a perda, a dor da perda, o amor e a ausência dele, sobre a forma como as pessoas lidam com todas estas questões. Nada de novo, portanto, dirão alguns. Engano puro. Nada mais disparatado. Lucy Dacus não ficou pelo óbvio nem pelo imediato. A tecitura emocional que enforma Historian é bem mais complexa do que pode parecer num primeiro instante, e as suas composições soam a pedaços honestos de uma vida passada por entre pedras e caminhos pouco fáceis de percorrer.
Depois dos dois fantásticos temas iniciais (referimo-nos ao slow burning “Night Shift” e ao mais arrebitado “Addictions”), o álbum começa a libertar o seu dolente veneno paralizante. Começa a libertar, a conta gotas, as sementes do que virá a ser. Estas boas sementes têm nomes e melodias próprias. Chamam-se “The Shell” e “Nonbeliever”, por exemplo. A primeira diz-nos que é importante manter a confiança, mesmo quando tudo parece indicar o contrário. A segunda, por contraponto, é sobre o a perda da crença religiosa em que Lucy Dacus foi criada. Mas há mais. “Yours & Mine” resulta da consciência do medo da dor, enquanto “Body To Flame” se centra na ideia da amizade como coisa efémera, uma vez que nunca conseguimos conhecer o outro por completo. E, já que temos o processo iniciado, vamos até ao âmago das que faltam: “Timefighter” pondera sobre o reconhecimento da nossa própria mortalidade, “Next of Kin” segue o mesmo trilho mas já sem o estremecimento interior da anterior, enquanto “Pillar of Truth” é uma espécie de relato (quase em direto) da morte da sua avó. Por fim, “Historians” é uma síntese dos pedaços que Lucy Dacus resolveu trazer até nós e uma perfeita maneira de terminar o disco.
Historian tem momentos de melancolia, sofrimento, ternura (muitos), e outros (poucos) de descarga catártica e raiva. É visceral, sem ser azedo. É pungente, mas não cede terreno à comoção piegas. Já nasceu adulto, e por vezes isso nem sempre se entende num curto espaço de tempo, ou não fosse essa medida da duração das coisas aquilo que nos permite, acima de tudo, pensar muito bem antes de afirmarmos o que realmente queremos dizer.