Místico. Nostálgico. Poético. Sem precedentes e sem herdeiros. Único.
Certa noite, Van Morrison sonhou que a electricidade desaparecera do mundo, calando os instrumentos eléctricos. Interpretou a coisa como um chamamento. Que se lixe o rock de “Gloria” e de “Baby Please don’t Go, pensou. E que vá também para o diabo o R&B de “Browned Eyed Girl”. O seu próximo disco seria totalmente acústico, sem groove nem ganchos pop. O estilo? Inclassificável. A voz? Soul. A guitarra? Folk. O contrabaixo e a bateria? Jazz. A flauta? Céltica. O sentimento? Blues. Parte do carisma de Astral Weeks decorre, justamente, da sua escandalosa originalidade – liberta de qualquer linhagem e irrepetível.
Uma obsessão perseguia-o: queria uma música que fosse como um sonho, um canto que nos transportasse para outro tempo e lugar. Estranhos poemas começaram a visitá-lo, escritos de um só jorro, sem que o próprio Morrison percebesse inteiramente o seu significado. Como bom discípulo do Kerouac que era, recusou qualquer filtro, deixando a escrita automática correr livremente. E todos os caminhos iam dar à Belfast da sua infância, aos campos ensopados de chuva, aos putos na rua apanhando caricas, ao estremecimento do primeiro beijo adolescente. Uma saudade ampliada pela penumbra do presente, pressentimos.
Onde as letras são complexas e oblíquas, as músicas são escandalosamente simples. O tema-título, por exemplo, tem apenas dois acordes. A pobreza harmónica joga a seu favor: induz, por repetição, uma espécie de transe; e liberta Morrison para a improvisação e suas nuances expressivas. Astral Weeks é, acima de tudo, uma obra-prima da interpretação vocal, conjugando a liberdade do jazz com o sentimento da soul. É uma voz que faz tudo. Mais: é uma voz que faz tudo no momento certo. Quando é preciso raiva, ela grita. Quando é preciso doçura, ela sussura. Quando não é preciso nada, ela cala. Rudeza e vulnerabilidade em partes iguais.
Os arranjos pouco mudam de tema para tema, como se fosse uma só grande canção, cheia de neblina e de sonho.
Como se fôssemos estranhos neste mundo.
Como se nascêssemos outra vez.