A memória tem apetites particulares. Fomos ouvir de novo Perto de Ti, o primeiro disco de Lena d’Água com a banda Atlântida. O reencontro ocorreu sem grandes desilusões, o que é sempre bom sinal.
O tempo passa e não para. Para muitos, passa mesmo demasiadamente depressa. Para outros, nem tanto assim. Estejamos nós no lada da barreira que estivermos, a verdade é que, quando confrontados com uma determinada data, a sensação é, muitas vezes, de incredulidade. Parece que não, que é impossível, será certamente um engano, uma mentira. Mas os factos só enganam os que não os conhecem, e a verdade não existe para simpatias de ocasião. Há que lidar. E serve todo este intróito para referir apenas que o álbum Perto de Ti, de Lena d’Água e a banda Atlântida, ao contrário do que o título anuncia, encontra-se já a quatro décadas de distância. Isso mesmo, quarenta anos! Foi lançado em 1982, no mês de junho. Por isso, por ser data tão redonda e ainda por ser um disco importante para o chamado rock português (o tal boom que se deu nos anos oitenta, sobretudo a partir do álbum inaugural da carreira de Rui Veloso, Ar de Rock), o Altamont resolveu puxar um bocado o filme atrás, indo ao encontro desse disco histórico. Com apenas dez canções no formato vinil original (na edição em cd foram acrescentadas quatro faixas extra), o disco da menina Helena Maria de Jesus Águas fez algum sucesso quando foi posto à venda, sobretudo por via de quatro temas que marcaram aquele longínquo ano do início dos anos oitenta. Hoje, segundo consta, tem (quase) estatuto de álbum de culto. Enfim, o tempo passa e não para, sendo que, por vezes, traz surpresas.
Reza a história que Lena d’Água subiu a um palco pela primeira vez a convite de um amigo, numa qualquer festa do Bairro de Santa Cruz, para que assobiasse uma passagem de “Pode Alguém Ser Quem Não É”, de Sérgio Godinho, uma vez que o seu amistoso companheiro precisava que a parte da flauta da composição em causa, por não existir em palco, nesse instante, qualquer instrumento de sopro, fosse executada por quem dominasse a arte do assobio. Terá sido assim a estreia da filha do mítico José Águas, grande capitão do grande Benfica dos anos sessenta. Mas como o tempo não dá nunca sinais de travar, aceleremos até ao ano de 1982, quando Lena d’Água era já uma das poucas vozes femininas a ter em conta no início dessa década.
Perto de Ti surge num momento conturbado. Depois do sucesso de Sem Açúcar, primeiro disco dos Salada de Frutas com Lena d’Água nas vozes, há desentendimentos e ruturas, saindo a cantora para fundar a banda Atlântida, grupo de suporte do disco de 82. O álbum fez sucesso, como referimos, por pouco não atingindo o galardão de disco de ouro. Para muitos, este é o melhor disco de Lena d’Água. Canções como “Nuclear Não, Obrigado”, “No Fundo dos Teus Olhos d’Água”, “Demagogia” e “Perto de Ti” tornaram-se intemporais, fazendo deste primeiro registo em longa duração com a sua nova banda, um marco na história da música rock portuguesa, assim como da sua própria discografia.

Apesar de ter sido produzido por Robin Geoffrey Cable, produtor revolucionário tendo em conta o que por cá se fazia em estúdio, a verdade é que, pelo menos em parte, o álbum parece, quando ouvido hoje, um pouco datado. Mas isso pouco importa, uma vez que as canções, quando boas (e algumas são mesmo bastante interessantes), resistem a tudo. A voz da cantora surge como nunca, jovem, fresca, cristalina, trunfo excelente, a par da figura física de Lena d’Água, assim como da sua irrequieta presença em palco.
Assim como aconteceu com alguns outros artistas daquele tempo, também Lena d’Água passou por uma longa e quase infinita noite de esquecimento, aqui ou ali pontuada por uma ou outra aparição, embora sem grande significado junto do público. Mas, na verdade, também ela foi reabilitada, e hoje vai estando mais ativa. Curiosamente, como bem se sabe, há uma nova geração de músicos que não deixa de lhe render a devida homenagem, sendo que o álbum Desalmadamente é a prova mais cabal do que afirmamos.
Ouvir Perto de Ti não deixa de ser, sobretudo para quem viveu ainda jovem os anos de 1980, um bonito momento de nostalgia. E, como também sabemos, esse estado de certa e prazerosa melancolia nunca fez mal a ninguém. Celebrar os quarenta anos de Perto de Ti é como abraçar momentos em que a felicidade ainda usava calções e se acreditava que o rock português talvez nos pudesse salvar.