Ao 20º disco em dez anos, os King Gizzard dão-nos um álbum duplo esquizofrénico mas muito satisfatório, que vai do thrash ao hip-hop, passando pela chillwave e por tudo o mais que conseguiram meter neste caldeirão de criatividade.
No panorama musical actual, não há nada que se compare aos King Gizzard and the Lizard Wizard (KGLW). No ritmo de produção, na intensidade, na variedade de estilos a que se atiram, na qualidade média de praticamente tudo o que fazem, na legião de fãs que os acompanha, ávida, à espera da próxima curva no caminho.
E agora, com 10 anos de carreira discográfica, o que fazer neste momento de data redonda?
A data é mais significativa que apenas a década. O novo disco, Omnium Gatherum, é o vigésimo de uma carreira fulminante e altamente incomum. E foi também a oportunidade para a banda voltar a ensaiar, tocar e gravar junta, depois dos anos de pandemia. Para tirar o pó, o grupo australiano começou por recuperar temas antigos que foram ficando esquecidos aqui e ali, sem encontrar antes a versão final que lhes permitisse ganhar casa em qualquer um dos muitos discos anteriores. A energia dessas sessões foi tal que sucederam duas coisas: esses “filhos sem casa” foram completados sem esforço e o entusiasmo do reencontro levou a mais uma explosão de novas criações (o poço destes tipos parece, de facto, não ter fim). Resultado: ao vigésimo disco (o 19º, Made in Timeland, também é já de 2022), o primeiro álbum duplo dos King Gizzard.
O título, Omniun Gatherum, supostamente significa, em latim, “uma junção de coisas variadas”, desvenda um pouco do resultado final deste trabalho. Quem vier aqui à procura de grandes conceitos como aqueles que deram corpo a discos anteriores dos KGLW sairá desiludido. Pelo contrário. Este álbum perde em coerência aquilo que ganha em variedade, com os rapazes australianos a darem asas a todos os seus impulsos musicais, num caldeirão fervilhante de ideias, conceitos e estilos.
Não há forma de falar de Omniun Gatherum sem falar em “The Dripping Tap”, o monstro que abre o disco. Com uma duração acima dos 18 minutos, estamos perante um esfuziante freak-out de guitarra, um tema colossal de rock acelerado temperado com batidas motorik, a combinação na base de vários dos melhores temas da banda. Saímos de “The Dripping Tap” também nós próprios a escorrer de suor e de testosterona, Uma bomba, que só por si valeria o disco.
Depois deste arranque, seria sempre difícil manter o ritmo e a qualidade, mas os KLWG até conseguem por algum tempo. O forte começo do disco tem sequência logo a seguir com a óptima “Magenta Mountain”, uma canção quase pop, cheia de coolness synth e toques exóticos, que ajuda a limpar o palato e a descansar placidamente da montanha-russa anterior. Um dos melhores temas do disco, sem dúvida, mostrando que estes australianos também sabem brincar àquilo em que os Tame Impala se transformaram, infelizmente de forma demasiado coerente.
O bom momentum estende-se a “Kepler-22b”, com toques de jazz e uma secção rítmica em grande forma, com um baixo saltitante e “in your face” e uma bateria ligeira mas inspirada. Logo de seguida, outra pedrada, com “Gaya”, um petardo rock que chega a roçar o doom metal (mais à frente, os longos cabelos soltam-se com a thrashy “Predator X”).
E esta é uma das forças e das fraquezas do disco. Ao quarto tema, já foram para todo o lado, o que se compreende dada a forma como o álbum foi composto.
“Ambergis” é o mais perto que os King Gizzard estiveram de fazer uma balada, cheia de serenidade, acordes jazzísticos e bateria digital. E, chegados aqui, o que falta? Hip-hop, pois claro. “Sadie Sorceress” dá-nos a versão King Gizzard do hip-hop mais old school (o mesmo acontecendo com “The Grim Reaper”), mantendo alguma personalidade própria mas sem que o resultado seja extraordinário. E por que não algum tropicalismo calipso? Também há, com a ligeiríssima “Candles”.
E se Omiun Gatherum é uma mistura de músicas de diferentes géneros, “Evilest Man” faz isso dentro da mesma canção, juntando a batida kraut, os sintetizadores mais plácidos e guitarra eléctrica de derreter a cara, numa bela viagem de mais de sete minutos.
O disco começa então a perder força, ainda que tenhamos sempre pontos de interesse que nos mantêm curiosos e nos façam insistir. “The Garden Goblin”, por exemplo, remete-nos de imediato para Ariel Pink, com prazer.
Num disco claramente demasiado longo para conseguir manter a bitola de qualidade, há alguma palha que poderia ter sido excluída ou remetida para um lado B, sem grande ou nenhuma perda: “Blame it on the weather” lembra-nos os Unknown Mortal Orchestra sem grande convicção; “Persistence” é esquecível de uma ponta à outra, enquanto “Red Smoke” é salva pelas teclas de ter o mesmo destino; e “Presumptious” é mais arroz até arrancar numa feliz toada pastoral a fazer lembrar o excelente Paper Mâché Dream Balloon.
Ao 20º disco, os King Gizzard deram-nos um saco de gatos e encontraram finalmente a casa para vários filhos que andavam por ali perdidos. Mas não estamos perante uma coleção de outtakes ou de lados B mal amanhados. A produção é imaculada (ainda que cada vez mais digitalizada) e a qualidade média dos temas supera em muito o habitual em exercícios de agrupamento de órfãos musicais de uma banda já com alguns anos. E encontramos aqui temas que, facilmente, se encontram entre os mais imaginativos e memoráveis de um grupo que tem música para dar e vender.
É louco? É. É demasiado longo? Também. Mas é também um belo disco e a prova – que já não devia ser necessária – de que estes garotos transpiram música e criatividade por todos os poros.