O primeiro de dois concertos dos Kings Of Convenience em Lisboa foi uma celebração calma e sensível daquilo que a música pode ser em dias quentes de primavera ou longas jornadas de verão.
Os jacarandás de Lisboa anunciam a chegada iminente do verão. A cidade está pintada de tons roxos e lilases. No jardim da praça D.Luís, no Cais do Sodré, a relva está preenchida por amigos que se encontram para pôr a conversa em dia. (No topo dos jacarandás, os pássaros, à semelhança das pessoas, também conversam — cantando.) Quase toda a gente tem uma cerveja na mão e um sorriso sincero na cara: afinal, o dia de trabalho chegou ao fim e o entardecer revela uma cidade azul e dourada. Nem todos sabem, mas está um dia perfeito para escutar a música dos Kings Of Convenience — até porque a dupla norueguesa decidiu dar dois concertos em Lisboa, de forma a apresentar Peace Or Love, lançado em 2021.
A dupla norueguesa formada por Erlend Øye e Eirik Glambek Bøe, ainda que seja musicalmente multifacetada (Erlend apresenta registos diversos…), aposta em canções feitas à base de duas guitarras e duas vozes, criando peças musicais leves e ternas, que combinam particularmente bem com dias quentes de primavera ou longas jornadas de verão. Os portugueses têm bem noção disso, daí terem enchido o Coliseu dos Recreios no primeiro de dois concertos, até porque as saudades eram muitas: os Kings Of Convenience não visitam a capital portuguesa desde o ano em que lançaram Declaration Of Dependence (2009).
As pessoas entraram sem pressa no Coliseu. Durante um bom pedaço de tempo, a sala esteve despida, mas, às nove horas em ponto, o público estava praticamente todo sentado. Os Kings Of Convenience subiram ao palco uns minutos depois da hora combinada, mas ninguém levou a mal — os músicos chegaram atrasados e ainda foram aplaudidos por isso. De um momento para o outro, pegaram nas guitarras e começaram a tocar e a cantar, mas, antes, Eirik disse: Hello everybody. We are Kings Of Convenience, and this is our first song. A canção que abriu o espetáculo foi a recente “Comb My Hair”, tendo sido intensamente aplaudida assim que terminou. De seguida, decidiram tocar uma das canções mais bem sucedidas de Peace Or Love: “Rocky Trail”; na plateia e nos balcões, as pessoas aderiram à cantiga, dançando sentadas.
A terceira canção foi “Cayman Islands”, retirada do terceiro LP da banda, Quiet Is The New Loud, e ficava claro que os Kings Of Convenience iriam presentear a sala com alguns êxitos do passado. Ainda assim, nos dois temas seguintes, “Angel” e “Killers”, os noruegueses voltaram a apontar os holofotes para o último trabalho do seu reportório — e bem, porque, apesar de não ter provocado o impacto de criações anteriores, é um álbum verdadeiro, pois demonstra, sem espinhas, as intenções musicais dos noruegueses ao longo de 23 anos de carreira.
Desde o início, tanto Erlend como Eirik, puxaram pelas pessoas — estalem os dedos, iam pedindo. E as pessoas estalavam (as mais enérgicas batiam palmas e os pés). Antes de terem iniciado a canção “Love Is A Lonely Thing”, retirada também de Peace Or Love, o duo explicou a origem do título do tema, dando uma aula sobre literatura norueguesa. (Aparentemente, um dos grandes autores daquele país terminou um dos seus grandes livros com essa expressão.) Depois, chegou a vez de “Know How” (que, em Riot On An Empty Street, conta com a participação da amiga Feist). Por esta altura, a calma inicial já tinha terminado, e Erlend já tinha convidado o público a ir ao encontro do palco. De um momento para o outro, as cadeiras tornaram a não ter ninguém: o Coliseu dos Recreios estava em pé. No início ou no fim da música, já não me recordo, os Kings Of Convenience disseram que “Know How” era uma das músicas favoritas do público português — pude confirma-lo.
A guerra na Europa, motivada por uma invasão injustificada, invadiu a mente de todos nós. Erlend não o disse, mas pensou-o, assim que o festim provocado por “Know How” chegou ao fim. Depois de se sentar, anunciou “Peace Or Love”, retirada do álbum com o mesmo nome. Antes de introduzir a primeira nota, dedicou a canção ao povo ucraniano em fuga da guerra. Ninguém ficou indiferente a esta atenção, daí que um dos grandes aplausos da noite foi direcionado às pessoas daquele país infortunado. Ainda que o ambiente tenha ficado, naturalmente, mais pesado, “Peace Or Love” constitui um bom momento de música, pois foi possível escutá-la e refletir sobre a sorte (cada vez mais frágil) que temos.
“Catholic Country” foi a canção que se seguiu. O tema, que em Peace Or Love conta, mais uma vez, com a entrada de Feist, teve uma interação esplêndida da parte do público, que — agora sim! — estava todo de pé. Como Erlend e Eirik perceberam que as pessoas estavam cada vez mais alinhadas com o espírito musical impresso (de todas as bocas saía the more I know about you, the more I know I want you), decidiram oferecer solos de guitarra à sala. A partir daqui, o concerto foi sempre em crescendo: seguiram-se os clássicos temas “Mrs. Cold” (explosão de alegria), “Boat Behind” (sustentada pelas palmas a três tempos das pessoas) e “Misread” (cujo refrão foi entoado por todos).
O Coliseu dos Recreios sorria quando os Kings Of Convenience introduziram “Fever”, outro êxito de Peace Or Love. Há já algum tempo que, no palco, Erlend e Eirik tinham companhia: à esquerda de Erlend, um violino; à direita de Eirik, um contrabaixo. Ambos instrumentos de cordas mais clássicas reforçaram a mestria musical dos dois guitarristas noruegueses. Quando surgiu “I’d Rather Dance With You”, os presentes já pressentiam que vinha daí mais uma celebração: foi o que aconteceu. O grande tema dançável da banda norueguesa cumpriu as expetativas, tendo certamente impressionado até os ouvintes mais criteriosos. Ninguém parou de sorrir. Ninguém parou de dançar.
O concerto aproximava-se do fim. Ainda houve tempo para “Homesick” e “Rule My World”, dois temas necessariamente mais calmos — mas nem por isso os fãs da dupla revelaram menos entusiasmo: ninguém quis que o concerto chegasse ao fim (nem os próprios músicos, que estavam visivelmente impactados pela boa-vontade dos portugueses — mas certamente desgastados pela normal brutalidade de um tour…). Contudo, o fim chegou mesmo. Os Kings Of Convenience despediram-se, mas o público não os largou. A dupla chegou a abandonar o palco, mas logo voltou para tocar “Little Kids”, a mais antiga das canções da setlist (vive no primeiro LP da banda, Quiet Is The New Loud, de 2001).
O concerto terminou. As pessoas não saíram da mesma forma como entraram. Era relativamente tarde — no dia seguinte, iriam acordar cedo para trabalhar. Erlend e Eirik já tinham há muito pousado as guitarras. Eu continuei sentado, à espera que as pessoas da minha fila saíssem. Finalmente, saí. Quando cheguei à entrada da sala vizinha, o Politeama, continuava a pensar na senhora que estava sentada ao meu lado — passou o concerto inteiro a dançar levemente de olhos fechados. Realmente, só precisamos dos dois ouvidos para escutar música.