Foram precisos quatro anos, mas finalmente o Rei está de volta: The OOZ é a jóia da coroa de King Krule, que regressa mais forte do que nunca.
Já diziam os Pink Floyd em “Time”: “quiet desperation is the English way”. Talvez sejam as raízes punk de Archy Marshall – mais conhecido como King Krule, Edgar the Beatmaker, DJ JD Sports, Zoo Kid, etc. – a vir à superfície, mas, se tomarmos como certa a frase da banda britânica, a música do cantautor inglês de 23 anos é um murro no estômago dessa “English way”. Quando interrogado pela revista SPIN sobre a forma como a sua arte mistura imagens fortes (violentas até) com outras muito românticas e poéticas, Archy revelou que a grande diferença entre si e outros artistas é a junção de duas dimensões: ‹‹ser vulnerável e, ainda assim, tentar olhar toda a gente nos olhos e cuspir neles››. Se no seu álbum de estreia 6 Feet Beneath the Moon (2013) esse já era o caso, em The OOZ essa abordagem à criação musical é aperfeiçoada. O resultado está à vista: as 19 faixas que compõem o segundo registo de King Krule configuram o melhor e mais imersivo trabalho de Archy sob qualquer um dos seus nomes artísticos – e um dos melhores desta década. Só por isso, já valeu a espera de quatro anos.
The OOZ surge de um contexto que ajuda a explicar muito daquilo que se ouve ao longo dos 66 minutos do álbum. Por um lado, há relações amorosas a atar e a desatar. Depois, o regresso à casa de infância, propiciado pelo crescimento exacerbado de rendas em Londres. O próprio ambiente da capital inglesa influencia, como nunca antes num registo seu, a sonoridade da música: diretamente, através de samples de gravações da rua ou da chuva, e indiretamente na envolvência cinzenta e melancólica que marca a maior parte de The OOZ. Além disso, há um período de grande depressão a marcar a produção do disco.
A montante de tudo isto, está um paralisante bloqueio criativo que foi ultrapassado com a definição daquilo que seria o conceito central do álbum: gunk (porcaria). Em entrevista à Pitchfork, Archy explica que tudo se resume “às coisas que fazes subconscientemente, como o ranho, a cera, a saliva, o teu esperma, as tuas fezes (…), a tua barba, as tuas unhas. Tu nunca paras para pensar ‹‹uau, o meu cérebro está a produzir estas coisas constantemente – o meu cérebro está a criar toda esta porcaria, este campo de forças››”. The OOZ é, deste modo, uma viagem musical impressionista e difusa pelo subconsciente de Archy, em que tudo é ligado por um campo fluído de matéria orgânica.
A inaugurar a odisseia somos surpreendidos pela suave e, ao mesmo tempo, complicada “Biscuit Town”. A sequência de acordes no teclado conduz-nos gentilmente até nos deixar a vaguear pelas ruas desta cidade imaginária, levados pela batida. A combinação dos diferentes tempos do piano e da bateria criam uma estrutura polirrítmica verdadeiramente hipnotizante. Somos então levados para a estação de comboios e aí conhecemos “The Locomotive”. Aqui, King Krule continua a experimentação iniciada com a faixa de abertura do álbum, agora patente na maneira solta e natural como aparecem os elementos na abertura misteriosa da música.
Logo a seguir, surge “Dum Surfer”, que exibe em plena força uma faceta que Archy explora muito neste álbum com enorme sucesso: um som sujo, distorcido e cru. Neste caso, materializa-se num grunge psicadélico, que constrói uma cadência a partir de um início narcótico e enevoado até culminar num solo de guitarra que, uma vez terminado, dá azo à segunda parte, em que somos levados até ao final triunfante da faixa. Na mesma senda, temos também “Emergency Blimp”, que se assemelha à música que King Krule faria, tivesse ele nascido no seio do garage rock de Orange County, Califórnia. Já “Vidual” e “Half Man Half Shark” invocam o passado musical da família de Archy (o tio tocou na banda Top Cats, o padrinho integrava os The Ruts), com claras influências de ska e punk.
Algo novo em The OOZ é a quantidade de colaborações que o álbum condensa. Na verdade, nem são muitas, mas para um artista que se mostrava sempre só (muitos dos seus concertos iniciais foram feitos a solo), é uma evolução grande. A primeira, surge disfarçada na parte inicial da bonita “Slush Puppy”, com a doce voz de OKAY KAYA a cantar um poema da sua autoria umas quantas oitavas abaixo do seu tom normal. Na suite “Bermondsey Bosom”, dividida em duas partes (“Left” e “Right”), surgem as vozes de uma desconhecida e do pai de Archy, que declamam um belíssimo poema nas suas línguas maternas: espanhol e inglês, respetivamente. O mesmo texto aparece, mais tarde, em “The Cadet Leaps”, desta vez recitado em filipino por EYEDRESS.
Além destas, há uma colaboração que é provavelmente a mais fulcral neste disco e, ao mesmo tempo, a mais discreta, no sentido em que não é anunciada: Ignacio, o argentino responsável pelos saxofones que se ouvem em The OOZ. Em entrevista à SPIN, Archy revelou: Ignacio foi a chave que abriu o som do álbum para aquilo que nele se encontra, foi por causa dele que voltou a pegar na guitarra, relegando o MPC e o computador para segundo plano. Nas jams que tocaram juntos, desenvolveram-se improvisos que se transformaram em algumas das músicas deste segundo registo de King Krule. As faixas em que esta colaboração é mais proeminente configuram alguns dos momentos mais fortes de The OOZ – e também aqueles em que as influências de jazz e bossa nova mais se notam. Desta interação destacam-se a sensual “Logos”, as românticas “Sublunary”, “Cadet Limbo” e “Czech One” ou ainda a sonhadora “A Slide In (New Drugs)”. De resto, a grande presença do saxofone no disco reflete mais uma evolução no som de King Krule; sendo certo que já tinha aparecido anteriormente, em nada se compara ao destaque que aqui lhe é dado.
Contudo, aquilo em que King Krule é melhor continuam a ser as canções melancólicas sobre amores perdidos, solidão e depressão. Embora tal não parecesse possível – dada a qualidade do trabalho que precede The OOZ –, há cinco músicas neste registo nas quais Archy aperfeiçoa esta marca distintiva da persona de King Krule. É, pois, natural que essas configurem as melhores faixas de um álbum em que não existem músicas a mais ou de menor qualidade. A primeira a surgir desse grupo fantástico é “Lonely Blue”, em que a voz poderosa de Archy se faz ouvir vulnerável e desamparada, a chamar desesperadamente por um amor que não vai voltar. Numa solidão desoladora, canta “The sky was blue / And high above the moon was new / This eager heart of mine was singing lover come back to me / Lover, lover come back to me”.
As restantes quatro músicas desse lote coincidem com o término de The OOZ que, assim, não podia acabar de melhor forma. Logo a abrir essa secção final, somos confrontados com “The Cadet Leaps”, a melhor faixa do álbum. A sua simplicidade envolve-nos num mar de emoções pesadas, que não pode senão mexer profundamente com quem a ouve. A beleza e sensibilidade com que King Krule faz isto são tão aterradoras que a faixa parece vinda de outro mundo. Do primeiro acorde no piano ao último eco da guitarra, é melancolia no seu estado mais perfeito que ali é invocada, é a solidão de alguém que se perdeu na vida que escutamos naqueles 4 minutos.
Depois deste momento fantástico, temos a faixa-título “The OOZ”, em que ouvimos o cantor a procurar freneticamente por alguém. Aqui, temos alguns dos versos mais bonitos do disco, tais como “In soft bleeding, we will unite / We OOZ two souls, pastel blues / Heightened touch from losing sight” ou “Of depths unknown to be explored / We sink together through the sky”. Em seguida, “Midnight 01 (Deep Sea Diver)” é a representação mais direta do período de depressão que afetou Archy durante a produção de The OOZ. O sample do genérico de It’s Always Sunny in Philadelphia misturado com o som da chuva londrina pintam o quadro dos dias do artista durante essa fase. Por fim, a belíssima “La Lune” acaba com King Krule a subir à lua, enquanto espera que a sua amada lá vá ter com ele.
Este álbum é marcado por um forte ecletismo musical – algo que, de resto, King Krule já tinha mostrado no seu álbum de estreia. Além da instrumentação (sempre perfeitamente adequada àquilo que se canta), a escrita sublime de Archy Marshall reflete um grande crescimento e amadurecimento do cantautor inglês. A sua voz inigualável – que, em The OOZ, opta por não afogar em reverb, como antes por vezes acontecia – ressoa como nunca e arrebata-nos a cada segundo, tanto nos registos mais frágeis como noutros furiosos e agressivos. Sentimos que ele está ali à nossa frente a dizer – ou a cuspir na nossa cara – aquelas palavras, oferecendo-nos uma poesia que mais ninguém consegue produzir. Na já citada entrevista à Pitchfork, Archy diz: “agora voltei a ser o melhor poeta desta geração”. Não se pode cair no erro de confundir esta afirmação com uma manifestação de ego à irmãos Gallagher: o facto é que ele é mesmo o melhor poeta da nossa geração. Por isso e por tudo: longa vida ao Rei.