A estreia em disco da maior instituição do rock nacional. Ao fim de mais de três anos de luta, os Xutos recebem uma ajuda de António Sérgio e gravam uma bomba rock a tresandar a energia e testosterona juvenil. Um disco incontornável na música portuguesa, que já tinha bem claras as sementes do que aí viria.
Quando os Xutos & Pontapés chegam à gravação e edição de um LP, muita história tinha ficado para trás. Como o próprio nome do disco de estreia indica, o grupo existia “formalmente” desde a segunda metade de 1978. Entre a ideia original de Zé Pedro, cuja alcunha de então era “Podrezinnho”, e de Zé Leonel, o primeiro vocalista e grande impulsionador da banda, o grupo havia passado por muito, num Portugal onde os ecos do punk germinavam mas que não tinha, de facto, massa crítica para suportar à larga um grupo de rock n roll.
Da ficha técnica constam Zé Pedro na guitarra-ritmo, Tim na voz e no baixo, Kalu na bateria e Francis, na guitarra-solo. 1981 foi um ano marcante, com uma saída e uma entrada, de um conjunto que, ao longo dos anos, sobreviveu à custa da estabilidade dos seus membros.
Primeiro foi a saída de Zé Leonel, figura mítica ligada à fundação dos Xutos mas também dos Peste & Sida e de outros projectos. Como o próprio Zé Pedro chegou a dizer, sem Zé Leonel provavelmente não teria existido Xutos & Pontapés, tal a energia e a vontade inicial do vocalista. O problema era o comprometimento com a causa. Depois dos primeiros concertos, Zé Leonel deixara-se seduzir pela aura da estrela rock, e o seu comportamento errático deixava os restantes em apuros, nomeadamente nos ensaios. Foi nessa altura que Tim começou a cantar, mais para que o resto da banda pudesse ensaiar. Depois de vários ultimatos, a saída do fundador da banda – cujo trabalho ainda marcaria muito o primeiro disco – oficializa-se na primeira metade de 1981. Em Abril desse ano, Tim estreia-se como vocalista ao vivo, num concerto na…Prisão de Tires! Um pouco antes, já na fase de indefinição em relação a Zé Leonel, o grupo sente necessidade de mais um elemento a dar corpo à alquimia musical. A escolha recaiu sobre Francis, que tocava com Kalu num conjunto chamado, apropriadamente, A Outra Banda.
Francis trouxe ao grupo outra estaleca. Era claramente dos melhores músicos e tinha uma postura perfeccionista e calma, ajudando a estruturar melhor o futuro da banda. Com a formação finalmente estabilizada, e aproveitando toda e qualquer oportunidade para tocar ao vivo – com ou sem chachet, ou até aparecendo nos concertos sem terem sido convidados – faltava dar o passo seguinte: saltar das maquetes para os discos.
É nesta altura que o destino da banda se cruza com outra figura mítica do rock dos anos 80 e não só, o radialista António Sérgio. Na altura na Rádio Comercial, ainda antes do “Som da Frente”, criou uma editora independente, a Rotação, e os Xutos caíram-lhe no colo. Uma madrugada, já passava das duas da manhã, Zé Pedro foi esperá-lo à porta da Comercial, para lhe dar uma cassete da sua banda, os Xutos & Pontapés. Tudo começou aí, nesse encontro.
Mais tarde, António Sérgio explicaria o que o atraiu. O espírito de guerrilha e de do it yourself daqueles punks mal amanhados e com ar perigoso, e alguns dos temas: à cabeça “Sémen”. “Eu ouvi o Sémen, e o Sémen naquela altura, feito daquela maneira, seco como estava, era um hit single. Uma banda que tem aquilo tem tudo. E depois ainda havia o “Papá Deixa Lá” mais para a frente. E, com os diabos, quem ouve duas coisas daquelas ou é completamente surdo ou então sabe que tem ouro nas mãos”, contaria mais tarde o mítico radialista. Seria sua a tarefa de produzir o primeiro disco, antecedido pela gravação e edição de dois singles, o primeiro ainda em Dezembro de 1981.
As gravações de 78/82 acontecem em Abril, com António Sérgio ao leme, ajudando a dar forma a algumas partes das músicas. Ainda assim, o seu espírito era não mexer demasiado: “Da estrada ao estúdio, sem uma beliscadura” era o lema, pode ler-se em “Conta-me Histórias”, de Ana Cristina Ferrão, ainda hoje o grande livro sobre a história da banda. Como conta Tim: “A fase de pré-produção do álbum não foi tão pomposa quanto isso, o Sérgio ajudou-nos a meter alguns refrões e a sair de outros… foi basicamente um trabalho baseado na orelha, porque ele ouvia muita música e dava ideias”.
Como se fazia então, os temas editados em single não saíam no LP, e foi por essa razão que “Sémen”, o primeiro grande hino da banda, não está em 78/82. Quando o disco foi mais tarde reeditado pela El Tatu, editora histórica dos próprios Xutos, os dez temas dão lugar a 14, com a junção de “Sémen”, “Toca e Foge”, Papá deixa lá” e “Quero mais”. Não que “Sémen” fosse ajudar muito o grupo a vender mais: em 1982, a Rádio Renascença era uma das maiores e únicas divulgadoras de música portuguesa, e tinha naturalmente as portas fechadas para os Xutos, não só por causa dessa primeira letra mas também por causa de “Avé Maria”, que fechava 78/82.
Desses dez primeiros temas da edição original, há alguns hinos que ficariam até hoje no alinhamento dos concertos e no coração dos fãs. É o caso da já mencionada “Avé Maria”, de “Morte Lenta” ou de “Dantes”.
Mas, no geral, o que temos é um conjunto fortíssimo, duro, com a produção no exacto ponto entre o sujo do palco e o audível comercialmente. É uma fotografia do momento em que os Xutos eram a banda mais perigosa de Portugal, quatro putos esfomeados de singrar, sim, mas sempre “à minha maneira”, como haviam de cantar mais tarde.
Há o “calipso” acelerado de “Leo” (que foi o nome provisório do disco durante algum tempo, antes de este ser gravado); há o rock gingão de “Dantes; há a ressaca dura de rock de “Falhas”; o hino lento de “Quando eu morrer”; a agressão rápida e desbragada da edipiana “Mãe”, tudo isto só no lado A da rodela de vinil da Rotação.
O lado B abre com “Quero-te”, uma música leve de amor e luxúria adolescente, mais uma prova precoce de como os Xutos sabiam bem fazer um refrão demolidor. É um tema que cheira a Verão, ao início das férias de Verão e as suas promessas, entre elas a do amor carnal. É também uma das várias ocasiões para Francis brilhar, com um simples mas extraordinário solo, todo ele límpido de notas, como se as cordas escorressem o próprio sol. Depois temos “Viuvinha”, um tema que, à semelhança de “Avé Maria”, já denota uma complexidade de composição e de produção que seria explorada em discos posteriores. Segue-se o petardo rock de “Morte Lenta”, com as suas singelas quatro linhas de letra, perfeita para acelerar nos concertos. E ainda “Medo”, canção dorida, talvez a primeira música em Portugal dedicada explicitamente ao tema da heroína. O fecho é com a música que fez a Renascença benzer-se, “Avé Maria”, com a sua reza e coro de beatas.
A dureza do disco, as suas letras abertas e directas, que cruzavam obscenidades com sonhos simples de qualquer jovem, granjearam de imediato aos Xutos um lugar de culto no panorama musical português, em cima dos muitos concertos que já davam e que dariam nos anos seguintes. Não era só o rock directo dos UHF, não era a sofisticação portuense dos GNR nem o conceito pop artístico que os Heróis do Mar mais tarde trariam. Era rock puro e duro, com ecos punk, vindo das massas suburbanas e destinado a rodar, vezes sem fim, no quarto de qualquer puto que quisesse ser parte de um gang e ter uma mensagem à qual se agarrar.
Em Maio de 1983, Francis dá o último concerto com os Xutos & Pontapés, abrindo espaço para o guitar hero que marcaria muito a banda e o seu som até ao dia de hoje, João Cabeleira, vindo dos extintos Vodka Laranja. A saída de Francis dá-se depois de alguns choques, nomeadamente com Zé Pedro, que defendia uma abordagem mais punk e mais espontânea face à musicalidade comercial de Francis. Este continuaria na música, lançando discos a solo, fazendo parte dos Ravel e produzindo outros artistas, como Jorge Palma. Desapareceu do “radar Xutos”, mas este 78/82, e a afirmação da banda naquela inicial fase crucial, deve-lhe muito.
Com a chegada de Cabeleira, o quarteto estabiliza a formação que só mudaria com a entrada efectiva do saxofonista Gui, anos mais tarde, e que dura até hoje.
Em disco, tudo começou aqui. Em 1982, com quatro putos a dar tudo no estúdio como davam em palco, conseguindo fazer um disco que foi uma pedrada no charco e que se mantém relevantíssimo até hoje, encharcado em energia e testosterona juvenil.