Talvez muita gente não saiba quem é esta menina que faz as delícias de quase toda a crítica da especialidade há já algum tempo. Talvez poucos saibam dos seus quatro álbuns publicados, todos eles dignos da maior atenção. Talvez sejam ainda menos aqueles que a conhecem desde o princípio, e a seguem como se ela fosse a next big thing das cantautoras da atualidade. Talvez, talvez. Mas na verdade, os mais atentos sabem bem dos seus predicados, conhecem os seus trabalhos, inclusivamente este último e fresquíssimo Have You In My Wilderness. Falo-vos de Julia Holter, o mais recente caso sério para os que adoram nomes como os de Kate Bush, Laurie Aderson, Joanna Newson, entre alguns outros. Acabado de sair, Have You In My Wilderness tem sido louvado de forma bem categórica, tendo obtido cotação máxima na revista Mojo, por exemplo, o que não é coisa de somenos. Esta nova menina bonita da música americana tem, como já se percebeu, disco novo, e é bem bom. Não será de admirar que venha a constar no lote dos melhores álbuns do ano em muitas publicações nacionais e internacionais, lá para finais de dezembro. Até é bem provável que aconteça o mesmo aqui no Altamont. Talvez, talvez.
Talvez o encantamento comece logo pela voz. É lustrosa e límpida ao mesmo tempo. Parece uma criança que nos canta delicadamente aos ouvidos, embora sabedora e consciente do seu próprio fascínio. Para mais, é ainda dotada de uma certa inocência (bem estudada) que lhe fica a matar. Ao ouvir repetidas vezes o fantástico tema de abertura do disco em apreço (“Feel You”, a mais pop de todas as composições do álbum), e depois de ponderar sobre os predicados que lhe atribuí, vejo-a como uma espécie de Lolita das mais recentes vozes femininas. É misteriosa, densa, erotizante, tanto quanto uma voz e meia dúzia de canções o podem ser. “How Long” e “Lucette Stranded On The Island” mostram bem o lado mais negro da luminosidade de Julia Holter. Parecem velinhas a tremer ao sabor da brisa que vai passando, frágeis e ternas, de uma beleza cativante, distendida, crescente, que vai tomando conta de nós… Ainda bem que o outono chegou, para melhor saborearmos este punhado de temas. “Sea Calls Me Home” é outra pérola, e ao chegarmos a meio de Have You In My Wilderness elas são já tantas… Como se não bastasse, o saxofone que se ouve no tema é arrebatador e de extremo bom gosto. Caminhamos até “Night Song” e temos a certeza de estarmos perante uma evidência: este é um disco adulto que parece segredar-nos coisas importantes. Coisas como a efemeridade da beleza, a procura da luz, a elegância das sombras. Vistas assim, talvez todas as dez canções do disco façam (ainda) mais sentido. Talvez, talvez.
Compositora, teclista e intérprete, Julia Holter revela-nos, neste seu Have You In My Wilderness, uma particular visão da sua arte. As suas perceções soturnas, as suas estranhas histórias (é ouvir com atenção aquilo que Julia Holter nos canta para se perceber melhor o que pretendo afirmar), a neblina sonora que se liberta a cada nova canção, tudo isso me afeta quase até às lágrimas. É tão raro prender-me assim, tão intimamente a um disco, que o perigo de catarses destruidoras pode espreitar a cada momento. Nesse sentido, este é um disco perigoso. Deliciosamente perigoso, porque nos provoca, porque nos inquieta, porque joga connosco um jogo incómodo de jogar. Pobre da arte que não for capaz de inquietar aquele a quem, mesmo sem o procurar, se destina!
Percebe-se haver neste mais recente trabalho de Julia Holter (como também acontece com os anteriores, aliás) um seguro controle composicional, paredes meias entre a vertente clássica e algum experimentalismo. Mas são as camadas de fumo, de névoa, as vozes como marés que vão e vêm, os sons estendidos como lençóis esvoaçantes, que marcam indelevelmente este Have You In My Wilderness. Talvez esteja a um pequeno passo da perfeição, ou até mesmo um passo à frente dela, mas isso pouco ou nada importa por agora.