Por vezes é necessário não ter ponta de vergonha, e avançar irresponsavelmente para aquilo que nos apetece fazer. É exatamente isso que me leva a escrever o texto que estão a ler. As razões são várias, e lá chegaremos sem grande tardança. No entanto, mais importante do que isso, há o facto de querer experimentar fazê-lo, correr o risco da escrita sobre um disco cujo género nunca me cativou, embora a audição repetida do mesmo me tenha feito pasmar perante a sua beleza, ao mesmo tempo que fui corando de vergonha ao pensar que terei de admitir o que mais à frente se lerá. Resta-me um consolo, maior do que outros que também existem, mas que deixarei à margem destas linhas: a proverbialidade de nunca dizer nunca é um ensinamento que não podemos desprezar. É simples e é verdadeiro. Intemporal, assim as circunstâncias se conjuguem ao ponto de o tornar verificável. Tudo isto, toda esta introdução já longa e árida (ninguém perceberá o que quero dizer, certamente, até ao ponto em que estou) deve-se ao facto de ter em mãos o novo disco de Rufus Wainwright. É uma ópera. Chama-se Prima Donna, e há dias que me rendo aos seus encantos.
Corria o ano de 2009 quando fui à ópera pela primeira vez. De pé atrás, uma vez que nunca havia conseguido a proeza de ter ouvido um disco do género do princípio até ao fim, lá fui até ao São Carlos para assistir a La Bohème, a ópera proletária de Giacomo Puccini. Gostei muito do que vi, mas continuei incapaz de ouvir essa, ou qualquer outra obra do mesmo estilo, em disco. Um ano depois, nova e enriquecedora experiência, dessa vez bem fora de portas. Assisti a O Barbeiro de Sevilha na magnífica ópera de Hamburgo. Mas, na verdade, não evoluí um milímetro em relação ao convívio com o género, até que, cinco anos passados, dou por mim a ouvir Prima Donna com um sorriso rasgado nos lábios e um brilho nos olhos difícil de explicar. Mais ainda, em novembro tudo farei para estar presente no Grande Auditório da Gulbenkian para ouvir e ver a ópera criada por Rufus Wainwright. No entanto, pouco ou nada sei sobre esse estilo encenado, acompanhado de música e canto. Nada mesmo. Falta-me a mais simples base de conhecimento, e por isso iniciei este texto dando ênfase ao descaramento que toma posse de mim neste momento e me faz avançar, linha após linha, na esperança de que o julgamento de quem me vier a ler não seja cruel. Mas, se o for, será certamente merecido.
Há algum tempo atrás, Rufus disse que escrever canções pop foi uma longa preparação para escrever, mais tarde, uma ópera. Esse talvez seja um dos pontos que me fez aderir tão prontamente ao disco em causa. Não que haja nele alguma aproximação às suas anteriores canções e álbuns. Mas talvez exista (estou crente que existe) um romantismo melodioso que muitas vezes encontramos nos seus discos, o que injeta em Prima Donna uma delicadeza apreciável. O que ouço, assim sendo, não me incomoda, antes me conforta. As vozes são etéreas, as harmonias também. Tudo parece tão simples (os entendidos poderão, eventualmente, dizer primário, mas eu sou leigo, repito, e isso é um bem inestimável neste contexto), tão poderoso, tão tocante, tão bittersweet… Depois, a língua francesa faz o resto.
O libreto conta uma história sem grandes ornatos ou enfeites, embora algo truculenta. No fundo, o que se destaca é a decadência da figura de uma artista, os fantasmas que povoam a sua vida e a iminência de voltar a uma ribalta que já foi sua, a realidade dura, e o sonho que se julga redentor. Janis Kelly é Régine Saint Laurent, soprano, à roda da qual tudo gira. Dividida em 38 cenas (o CD é duplo), Prima Donna não me parece ser uma ópera em bicos de pés, pronta a mostrar o génio do seu autor. Não é ímpia para com os ouvidos pouco treinados, como os meus. É doce, até. Para além de tudo isto, trata-se do novo disco de Rufus Wainwright, compositor e intérprete de que tanto gosto, que já nos deu obras maravilhosas como Poses, Want One, Want Two ou Release The Stars.
Eu, que sempre acreditei nunca vir a gostar verdadeiramente de um disco de ópera, afirmando-o publicamente repetidas vezes, tenho agora esta pedra no sapato. Mas, aqui para nós, nunca um desconforto me soube intimamente tão bem.
post scriptum: eu deixei claro que pouco sabia sobre a matéria prima em apreço, o que o texto, aliás, comprova de forma totalmente esclarecedora.