No seu primeiro longa-duração, José Mário Branco eletrifica a figura do cantautor de prostesto e canta sobre o cinismo de quem cala o povo e o leva para a guerra, o exílio e a exploração do patrão, que tudo quer e tudo pode. Um disco magistral de rock de protesto que marcou a história da democracia e da música.
“Eu compreendo que a censura os irrite. (…)Não há nada que o homem considere mais sagrado do que o seu pensamento e do que a expressão do seu pensamento. Vou mais longe: chego a concordar que a censura é uma instituição defeituosa, injusta, por vezes, sujeita ao livre arbítrio dos censores, às variantes do seu temperamento, às consequências do seu mau humor. Uma digestão laboriosa, uma simples discussão familiar, podem influir, por exemplo, no corte intempestivo duma notícia ou da passagem dum artigo. Eu próprio já fui em tempos vítima da censura e confesso-lhe que me magoei, que me irritei, que cheguei a ter pensamentos revolucionários.”
António Oliveira Salazar em entrevista a António Ferro para o Diário de Notícias, Dezembro de 1932.
A censura é “como reação necessária, indispensável, contra a mentira pública”, ou como meio de negar “o direito à insídia, ao insulto e à calúnia, ao exovalho do que é digno, respeitável e essencial em a Nação.”
António Oliveira Salazar em entrevista ao Diário de Notícia, Novembro de 1945
Amordaçado por um regime autoritário que durava há 30 anos, e que o queria enviar para uma guerra ultramarina que ceifava muito mais vidas do que as oito mil que relatava, José Mário Branco decidiu exilar-se em Paris, França. Fugia de Portugal naquele mês de junho de 1963, aos 21 anos – e o barulho dos carris do Sud Express ficou-lhe na memória. É aquele barulho que milhares de portugueses ouviram nas primeiras horas de exílio, percurso Lisboa – Hendaia, típico de quem se viu forçado a deixar tudo para trás à espera desse “dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio”, em que tirámos a mordaça e pudemos cantar de pulmão cheio, sem focinheira, sem sussurros. É esse o primeiro barulho de Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, de 1971, primeiro longa duração de José Mário Branco: a azáfama do apeadeiro de Gare d’Austerlitz. Ouve-se ainda um acordeão a cheirar a chanson française, tocado com a melancolia de quem fugiu de casa contra a sua própria vontade, mas sombrio o suficiente para sentir o inconformismo da revolução.
A segunda faixa do lado A reforça essa revolução – não estamos perante o típico disco de protesto, de guitarrinha acústica à volta do ombro, boina na cabeça e megafone nos lábios. A “Cantiga para Pedir Dois Tostões” é uma canção rock: transforma o baixo elétrico em trote de comboio, embalado por pormenores psicadélicos da guitarra, cama perfeita para as harmonias dissonantes (horripilantes, até) sobre a esmola dada por um milionário, dois tostões mal-amanhados, que regressa ao país após uma viagem que o deixou mais rico. “Milionário que voltaste/ Dois tostões p´rós que atraiçoaste”, canta José Mário Branco, letra escrita pelo companheiro de exílio Sérgio Godinho, um dos principais letristas de todo o disco. O mesmo se sente em “Nevoeiro”, primeira canção do lado B, letra e composição da autoria de José Mário Branco: é um vira sombrio, onde a cadência do folclore português das vozes se mistura com o psicadelismo e blues da guitarra e teclas, como se de uma canção dos The Doors se tratasse.
Este folk ‘n’ roll de protesto não surpreende ninguém. Produzido pela Sassetti, uma das pequenas editoras emergentes que lançou muitos na clandestinidade, como a Tecla e a Orfeu de Arnaldo Trindade, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades foi gravado num contexto (e em condições) impossíveis de se encontrar em Portugal: Strawberry Studios, na Château d’Hérouville, França. Cinco meses antes de Zé Mário ter lá estado, os Grateful Dead pisaram o estúdio. Pouco tempo depois, Zeca Afonso respira o mesmo ar e produz lá Cantigas do Maio, enquanto Sérgio Godinho grava Os Sobreviventes. Era a magia daquele château do século XVIII numa comuna perto de Paris. Pormenor: naquela década, Elton John lançaria o seminal Goodbye Yellow Brick Road no mesmo estúdio, onde também Bowie produziria grande parte do ressacado Low.
Ao longo de quase 40 minutos, José Mário Branco canta sobre o cinismo de quem cala o povo e o leva para a guerra, o exílio e a exploração do patrão, que tudo quer e tudo pode. “Casa Comigo Marta”, novamente letra de Sérgio Godinho (nota-se na métrica, não é?), é uma valsa de um homem rico que tenta convencer uma mulher a casar – nem que seja à força. “Casas comigo, Marta? Que eu obrigo-te a casar”, exige o doutor Dom Gaspar, “rico e tutelar”, a Marta, “pobre e gaiata”, recusando até à morte. “Casar contigo não, maganão! Só me levas contigo dentro de um caixão.” Durante toda a canção, o homem rico tenta convencê-la com “ouro na Suíça e padrinhos aos centos”, “ações e rendimentos”, “apartamentos”, “um faisão no forno” que não sabe cozinhar, uma crítica à sociedade portuguesa rentista do Estado Novo, de enormes desigualdades, com elites abastadas e povo de pé descalço. “Perfilados de Medo”, com letra de Alexandre O’Neill, é uma marcha militar (a soar a fúnebre), numa monotonia de sintetizadores experimentais, onde os soldados são “aventureiros já sem aventura”. “Perfilados de medo combatemos.”
A última canção é incontornável. Em “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”, canção que dá nome ao disco, José Mário Branco tem um rasgo de criatividade e reinventa o poema de Camões – e subverte um símbolo nacional e patriótico num claro apelo à mudança de regime. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades / muda-se o ser, muda-se a confiança / todo o mundo é composto de mudança / tomando sempre novas qualidades.” E para pôr achas na fogueira, faz uma pequena nuance em relação ao poema original: “E se todo o mundo é composto de mudança/ troquemos-lhe as voltas, que ainda o dia é uma criança.” A composição tem por base a “La Nouvelle Génération”, do seu camarada Jean Sommer.
No lançamento do disco, aconteceu algo inédito. A 27 de novembro de 1971, numa sessão transmitida em direto pelo programa “Página Um” da Rádio Renascença, a produtora Sassetti apresentou o álbum no Cinema Roma em Lisboa. Isto aconteceu numa altura em que a Primavera Marcelista já se tinha transformado em Inverno, e todas as promessa de restituição das liberdades ficaram estilhaçadas pelo novo presidente do conselho Marcello Caetano. Portanto, em tom de provocação, passaram uma entrevista feita pelo jornalista Adelino Gomes a José Mário Branco e Sérgio Godinho em Paris.
Afinal, é o inaugurar de uma nova fase da música portuguesa de protesto, que passa de balada para orquestrações inovadoras e elétricas. “... Assim esta obra combate uma tradição onde a palavra é o som mais inteligível. Assim se encerra a fase confusa da nova música portuguesa. Assim se inaugura uma época nova onde também cantar bem e compor melhor serão condições a exigir à canção útil; da afirmação da palavra à desafinação das cordas, à percussão das peles e teclas, à imaginação nos arranjos, à criação melódica, à vocalização justa: aqui o circo foi desmantelado com todas as ferramentas do som.”, escreveu José Duarte em Música Popular Portuguesa. Acima de tudo, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades ficou no ouvido durante todos aqueles últimos anos de Estado Novo, revolução adentro, até aos dias de hoje. E se a cantiga é uma arma, se tudo depende da bala e da pontaria, foram tiros certeiros no coração de um regime podre.