Este texto, beneficiado pela historiografia, já conhece o feliz (e recheado) destino artístico de David Bowie – que, mesmo post-mortem, se prolongou. Mas e se, em 1976, a carreira de David Bowie tivesse terminado, afogada pelas mágoas de um casamento falhado e pela toxicodependência? De facto, na altura, o camaleão perdeu controlo da sua camuflagem. O “zombie amoral” Thin White Duke, vivendo os excessos de L.A. na sua plenitude, deixara estragos em Bowie, o seu hospedeiro, durante a era Station to Station. Na ressaca dessa possessão destrutiva, David Bowie decidiu arrumar o fato de Duke e, cabisbaixo, sacudiu os excessos que deixara no tapete, cheios de cocaína e desamores, substituindo-os por texturas, minimalismo alemão e sintetizadores. Assim nasce Low, o 11º álbum da sua discografia e o primeiro da lendária trilogia de Berlim – período que é considerado, para alguns, o melhor (e mais honesto) momento Bowie.
Low é, acima de tudo, uma revolução – pessoal e musical. A reabilitação pessoal começa em França, no estúdio Chateau d’Hérouville: após a digressão Station To Station, Bowie prepara canções para o filme “The Men Who Fell to Earth” e produz o segundo disco de Iggy Pop, The Idiot. Derivado a questões contratuais, os temas que Bowie compôs já não poderiam aparecer na banda sonora do filme. Por isso, Bowie guarda as canções para um eventual álbum.
Entre a tentação da coca, as constantes traições da sua esposa Angie, as batalhas jurídicas com o ex-manager Tony Defries e a situação financeira deplorável, Bowie sente a necessidade de mudar. Tal como compinchas de guerra, em busca de uma “desintoxicação criativa”, Bowie e Iggy Pop – também toxicodependente – trocam “a capital da coca”, a.k.a Los Angeles, pela “a capital da heroína”, a.k.a Berlim. “Parece uma terrível ideia, não é? Mas, de facto, eu detestava heroína. Por isso, Berlim era um sítio seguro”, relatou Bowie à Detail Magazine em 1991. Numa aprendizagem para serem “bons rapazes”, Bowie e Iggy tornaram-se colegas de quartos e, juntos, começaram a trabalhar nos seus discos.
Desintoxicações à parte, a nova aventura berlinense serviu para aprimorar o fascínio que Bowie guardava, desde a era Station To Station, pelas atmosferas e pela motorik da nova vanguarda alemã. Na prateleira, Bowie guardava religiosamente os discos Neu! 2 dos Neu! e Another Green World de Brian Eno. Ainda que apegado aos ritmos soul, versão homem cisgénero branco, que aplicara no disco anterior, o interesse pelo oculto, pela música de texturas e por atmosferas melancólicas crescia. E quem melhor para explorar tais ideias? Brian Eno e Tony Visconti que, ao juntarem-se à irmandade da desintoxicação, completam a equação berlinense. Os ingredientes para Low estavam em banho maria: cinco amigos numa cidade louca, oprimida por um muro e uma guerra, que tentavam exorcizar os seus demónios com um EMS Synthi AKS e uma Eventide Harmonizer que, nas palavras de Visconti, segundo a biografia “Starman: David Bowie”, “era capaz de foder o tecido do próprio tempo”.
Low, ao contrário de Station To Station, tem dois momentos diferentes, separados pelas duas faces do mesmo vinil. O lado A, sete canções de pop confessional, explora os demónios que o assombram: as dores de um homem viciado em cocaína – como em “Sound and Vision” (“and I will sing, waiting for the gift of sound and vision / Drifting into my solitude, over my head”) – e a separação com Angie – como em “Breaking Glass”, que trata de um episódio violento em Berlim onde Bowie e o namorado de Angie, ainda esposa de Bowie na altura, partem um vidro durante uma briga. Apesar de ser o lado mais saltitante, as inovadoras tarolas secas (mas explosivas) e os sintetizadores comichosos anteviam o que viria a ser a face do lado B: o experimentalismo. Virando o disco encontramos quatro canções (quase) sem voz, melancólicas e sem estruturas convencionais, tal como um laboratório de texturas. Aqui está mais perceptível o quão a sonoridade alemã acima referida o influenciou. Atmosferas da sua própria ruína, refletidas em viagens também desoladoras – como em “Warszawa”, escrita durante uma visita de Bowie a uma Varsóvia acinzentada pela guerra, contendo cânticos pertencentes ao folclore polaco, mais especificamente ao Slask. Faixas simples, sem groove, que privilegiam a melodia. Com a ajuda de Visconti e dos sintetizadores de Eno, este lado tornou esta faceta de Low num protótipo da new wave: os Joy Division, que se chamavam inicialmente Warszawa, em homenagem ao tema de Bowie, souberam dar uma roupagem punk às linhas deste disco; os Heróis do Mar seguramente ouviram a “New Career in A New Town”; as guitarras decrescentes dos The Cure tresandam a “Subterraneans”. E Bowie não tinha dúvidas do que estava a fazer ali, com Visconti e Eno, em Berlim: “o futuro da música estava a acontecer”.
Mas lá está: somos beneficiados pela historiografia. Os factos, registados em biografias e outros formatos, já são sabidos. E se Bowie, que nem um eremita distante, preferisse guardar sigilo de todos os detalhes da sua vida de então? Como ficaria este texto? Bastante semelhante. Porque, lá está: Low é um trabalho honesto de uma mente criativa que habitava num corpo exausto, saturado pela cocaína do passado, pela respetiva desintoxicação e pelo coração partido.