O Bairro do Amor marcou o fim de um período de enorme produtividade na carreira de Jorge Palma, antes do hiato dos anos 90, e é um álbum quase só de clássicos, onde Palma cristaliza a sua escrita de canções e o domínio do seu instrumento
Por esta altura já ninguém terá dúvidas (e se as tiverem, é consultar os restantes textos deste especial) de que Jorge Palma tem lugar garantido no panteão dos mais altos escritores de canções da nação. Os historiadores da música e os fanáticos de Palma saberão com certeza discorrer horas a fio sobre as razões que tornam a minha afirmação verdadeira, mas, para mim, jovem que não se especializou no frontman do Palma’s Gang, são duas as razões que fazem de Jorge Palma um tesouro vivo a quem todos devemos reverência e gratidão. Primeiramente, sem ser o melhor cantor, é notável a forma muito própria como Palma trabalha a métrica das suas extensas letras, meio a cantar, meio a falar, e como as faz encaixar nas belíssimas melodias que compõe. E em segundo lugar, Palma é um contador de histórias nato e um excelente letrista, o que estabelece as condições perfeitas para se criarem cenários e personagens (que falam muitas vezes na primeira pessoa) de uma profundidade cinematográfica, com quem gostamos de viver, amar ou sofrer. O disco que Jorge Palma lançou em 1989, e o último disco de originais que lançaria durante 12 anos, verifica ambas estas condições e certamente contribuiu para que se comprovasse a afirmação com que comecei este texto.
Quando a editora EMI-Valentim de Carvalho rejeitou a maquete de Bairro do Amor, álbum com o nome de uma canção gravada originalmente em 1977, Jorge Palma foi com ela bater à porta da PolyGram de Tozé Brito e dos estúdios de gravação Namouche, e por lá ficou. Lá, com a ajuda de Francis (antigo guitarrista dos Xutos e Pontapés, que também produziu o álbum Só) e de Tó Pinheiro da Silva, na produção, concluiu aquele que viria a entrar na lista dos melhores álbuns portugueses do século XX, Bairro do Amor, o seu oitavo álbum de originais, lançado 1989, já depois deste ter completado o curso de piano do conservatório.
É fácil não dar a devida importância a Bairro do Amor quando este sai apenas dois anos antes de Só, o marcante álbum de versões ao piano que Jorge Palma gravou também com a PolyGram. “Frágil”, “Bairro do Amor” e “Só”, alguns dos melhores temas do álbum Bairro do Amor, foram regravados em Só com arranjos mais simples que deixam sobressair a genialidade das composições, ou, se quisermos ser menos polidos, em versões melhores. Isto pode, à primeira vista, fazer diminuir o entusiasmo para entrar no oitavo álbum de Jorge Palma, mas isso é um erro, tal vos garante esta não especialista nesta matéria.
“Frágil”, que tem direito a duas versões neste álbum, surge como um lamento gingão, com uma banda completa por trás. Sopros, guitarras, piano, e um ou outro apontamento um tanto ou quanto datado, abrem a festa enquanto Palma fica a um canto a explicar-nos como “adorava estar in”, mas que se está a sentir out. A contradição da energia da melodia com o estado de espírito de Palma (porque não duvidamos que aqui a personagem principal seja ele próprio) é por vezes difícil de ultrapassar (talvez seja por isso que a versão de Só soe melhor), mas este não deixa de ser um clássico absoluto de Palma que não falta, ainda hoje, nos seus alinhamentos. O mesmo se pode dizer de “Só”, a faixa que mais tarde deu nome ao disco, e que claramente também ganhou com o arranjo mais despido, ou de “Bairro do Amor”, faixa originalmente lançada no álbum Té Já, de 1977, que ganhou aqui a sua segunda (mas não última) versão gravada.
Mas porque não só de faixas de Só é composto o Bairro do Amor, importa mencionar outras pérolas que, não tendo ganho uma segunda vida, são igualmente dignas de nota. “Minha Senhora da Solidão” é linda com o seu órgão devoto e o pranto de Palma sobre o luto e como, por vezes, os sacrifícios não fazem bem a ninguém. “Eternamente Tu” faz uma declaração de amor misteriosa, mas nenhuma outra canção do disco é tão bem-sucedida no romantismo como “Dá-me Lume”. Doce e bem-disposta, com uma guitarra e uma linha de baixo que fazem com que dançar seja quase irresistível, “Dá-me Lume” relata uma paixão profunda, mas ao mesmo tempo simples, já que “aquilo que conta no universo, é esse passo inseguro, e o paraíso no teu olhar”. Sendo talvez o tema mais conhecido do público (depois de “Frágil”), esta bonita canção é também ainda tocada por Jorge Palma, tantos anos depois, e ainda bem. Já perto do fim do disco, “Passos em Volta” é mais despida que as restantes faixas do disco (apesar de incluir, ainda assim, um naipe de cordas e sopros), mas igualmente bela e digna de atenção, com o piano em primeiro plano e a clássica métrica pouco óbvia de Palma.
O Bairro do Amor marca o fim de um período de enorme criatividade de Jorge Palma e consegue cristalizar a sua técnica de escrita de canções e o domínio do seu instrumento de uma forma quase perfeita. Prova disto é que as canções são quase todas clássicos intemporais, todas dignas de figurarem em compilações best of (não é comum um só álbum concentrar tantas pérolas como este, sobretudo numa carreira tão extensa como a de Palma). Os arranjos por vezes demasiado cheios podem não ter envelhecido da melhor forma num caso ou noutro (escolhas que fizeram sentido com a época e a disponibilidade orçamental da editora) mas isso não impede que se admita a genialidade deste conjunto de canções, que não precisam de artifícios (como vimos mais tarde em Só) para sobreviver à prova dos tempos e serem, ainda hoje, grandes canções. Porque é isso que Jorge Palma nos deixa, grandes canções, tão honestas que se tornam facilmente universais.