O pontapé de saída a solo de John Cale dá pelo nome de Vintage Violence. É enganoso, o título. O álbum traz-nos leveza e paz de espírito, sempre que o ouvimos.
Vintage Violence é o primeiro álbum a solo do nosso bom galês. Depois das aventuras em veludos subterrâneos na companhia de Lou Reed, Sterling Morrison, Moe Tucker, Nico, Angus MacLise, Andy Warhol e outros mais da vanguarda nova-iorquina, a decisão de tentar fazer carreira em nome próprio estava tomada. Ainda bem, como a história da música soube comprovar desde muito cedo. Vintage Violence teve boas críticas, genericamente falando, mas o próprio Cale não terá ficado muito satisfeito com o LP, dizendo tratar-se de um trabalho de aprendiz, demasiadamente simplista e pouco mais. Formou uma banda (os Penguin) e lá foram todos eles para estúdio, nos finais de 1969. Acabou por ver a luz do dia a 25 de março do ano seguinte. Mais de cinco décadas passadas, Vintage Violence ouve-se muitíssimo bem. Apesar de algo datado, é de uma pérola que se trata. Um objeto sonoro pujante, que nos desarma e surpreende pelo lote de canções que apresenta. John Cale tinha razão, quando apontava para a simplicidade dos temas. No entanto, talvez seja esse o seu maior e mais notável trunfo. Isso e a mistura de sons e tons desse final e início de décadas tão marcantes e únicas na história da música pop-rock do século passado.
Quando ouvimos a inicial (e ótima) “Hello, There”, percebemos que John Cale funcionou como uma esponja de influências. Nela, na canção de abertura de Vintage Violence, ouvimos sons da canterbury scene, ouvimos Caravan, Kevin Ayers, até um cheirinho a Pink Floyd dos primeiros trabalhos. Está lá tudo, se escutarmos bem esse fantástico momento sonoro. O mesmo acontece em “Gideons Bible”, menos pop que a primeira, mas igualmente forte (o coro faz bem a sua função). Curiosamente, é com “Big White Cloud” que nos vem à memória, pela primeira vez, os já deixados para trás Velvet Underground. Teria ficado bem, essa faixa, como derradeiro momento do icónico disco da banana amarela de Warhol. “Cleo” e “Please”, que terminam o primeiro lado da rodela de vinil, são temas que evocam nostalgias beatlelescas e byrdsianas, pacatas e demonstrativas de que less is more.
No Lado B de Vintage Violence, o estado de graça das belas e eternas canções permanece. A força de “Charlemagne” é tremenda e vai crescendo à medida que os minutos vão passando. É a mais longa de todo o álbum, e ainda bem. “Bring It On Up”, no seu jeito bluesy-pop-rock talvez seja a menos memorável do lote das onze, embora não me atreva a garantir tal coisa. Ainda hoje gosto de imaginar, formulando um desejo e uma pergunta ao mesmo tempo, como será que ficaria na particular voz de Dylan? Depois, surge “Amsterdam”! Tremenda, única, ocupando um lugar de total destaque em Vintage Violence, lembrando os ambientes sonoros do génio Nick Drake. E, por ser um exercício engraçado de realizar (de novo), também me apraz imaginar que bem ficaria “Amsterdam” na voz de Scott Walker, mesmo sabendo que a sua “Amsterdam” (Mort Shuman e Jacques Brel) já lhe foi bastante para garantir o eterno estrelado, o Olímpo onde só os poucos e bons repousam, provavelmente ao som de todas as eternas canções que eles próprios foram capazes de criar. “Ghost Story” é bela e cativante (há ali um órgão por detrás que vale ouro), assim como a mais roqueira “Fairwheater Friend” também cumpre muito bem o seu papel, o de colocar o acorde final a Vintage Violence.
É um enorme prazer ouvir o primeiro álbum a solo de John Cale! De uma ponta a outra, há sempre vários motivos de interesse, assim como canções que se tornaram icónicas, no seu percurso em nome próprio. Era impossível imaginar o que viria a seguir (Church of Anthrax, 1971), de tão diferente e inusitado, embora na verdade essa parceria entre John Cale e Terry Riley tivesse sido gravada antes ainda de Vintage Violence. Confuso? É ler de novo, e sobretudo, já agora, ouvir os dois discos, que bem merecedores são das vossas melhores atenções.
Nota final para a ótima capa de Vintage Violence. O que nela vemos é o próprio John Cale por detrás de uma máscara de vidro e de uma meia de náilon. Resultou muito bem. Tem o seu lugar garantido no lote das capas sagradas do mundo da música.