O epíteto de “o homem mais ocupado do rock n’ roll” costuma ser aplicado a um de dois tipos: Dave Grohl e Jack White. Ainda assim, se o primeiro se dedica à música e às várias bandas com as quais toca, White faz isso e junta-lhe um activismo em relação a causas como a pureza do rock e o revivalismo do vinil. Ou seja, se Grohl é sobretudo um tipo porreiríssimo, White traz consigo uma aura e a pretensão de ser mais do que isso: é visto por muitos como o carregador da tocha, o mensageiro da boa palavra, o salvador dessa coisa tão vital e tão preciosa chamada rock.
No último ano, White tem estado, de facto, ocupado. A sua editora/loja Third Man Records está mais activa do que nunca, e o que começou por ser uma brincadeira tem vindo a crescer consideravelmente, tomando muito tempo ao seu dono e criador. No último Record Store Day bateu um recorde do Guinness para o disco mais rápido de sempre, ao gravar um single de manhã, levando o master à fábrica de prensagem e vendendo os vinis daí resultantes a seguir ao almoço. Tudo isto supervisionado directamente pelo artista, que esteve mesmo ao balcão a vender os discos.
Enquanto gerente da Third Man Records, foi também responsável pela edição de vários discos, entre bandas novas e reedições de jóias perdidas do country. Foi ainda peça essencial noutro disco que acaba de chegar às lojas, A Letter Home, de Neil Young, gravado ‘live’ numa cabine dos anos 40 na sede da Third Man, em Nashville.
Por último, viu-se envolvido numa polémica muito desgastante, com a imprensa cor de rosa a divulgar e-mails privados seus, nos quais falava – mal – de gente como os Black Keys, que acusava de lhe terem roubado o estilo e de se quererem promover à sua custa. Também em entrevistas falou de mais. O resultado, na prática, foi o mundo ter visto White a ser menos do que agradável para Meg White, por exemplo, ou criticar a (de facto) insuportável Adelle. Tudo isto, em relação a uma pessoa tão privada como White (lembre-se o secretismo que sempre rodeou a sua relação com a outra metade dos White Stripes) pareceu, finalmente, a sua vida – lixo e tudo – a fugir-lhe do controlo.
Tudo isto interessa – se interessa – se tem ou não reflexo na sua obra. E, agora que temos nas mãos o sucessor do fantástico Blunderbuss, a verdade é que o que se ouve é o bom e velho Jack. O Willy Wonka do rock, que se recusa a crescer e vive na sua fábrica de maravilhas, neste caso de riffs e discos de vinil. A confusão parece ter ficado à porta do estúdio.
Estamos perante mais um tomo na história do homem que, estudando Leadbelly e os Led Zeppelin, decidiu que iria fazer música fiel ao que ouvia na sua cabeça, e isso terminava no início dos anos 70. E digo mais um tomo porque este disco é, claramente, uma súmula do que White tem vindo a fazer há 15 anos. White Stripes, claro; algum Dead Weather; bastante Raconteurs, acima das restantes influências; bastante White de Blunderbuss e até algum Rome, projecto no qual partilhou os holofotes com Danger Mouse e Norah Jones. “Would you fight for my love” é um exemplo deste resquício de Rome, com um tema vagamente western spaghetti bem conseguido até ser ameaçado por um refrão fraco e a roçar perigosamente um rock fm que nunca havíamos ouvido a White. “High Ball Stepper”, um dos singles de avanço do álbum, é um instrumental que podia estar na banda sonora de Django Unchained, e um bom exemplo do que o artista pode fazer em termos do que é a reinvenção do blues. “Lazaretto”, que dá o nome ao disco, é um dos melhores temas, rock com muito boogie, lembrando o excelente “I’m shakin’” do disco anterior. É também um dos temas mais produzidos do disco, deixando no ar a ideia de que White poderá ter aqui caminho a explorar, se algum dia deixar de tentar reduzir-se à básica alquimia da guitarra e bateria. “Just one drink” destaca-se pelo básico da letra e da música, dominado por uma pianola de cabaret à filme do Trinitá, e não deixará grande história. A marca dos Raconteurs é sensível em vários temas, sendo um deles o óptimo “Alone in my home”. Já “Entitlement” é country com direito a banjo e uma discreta mas decisiva guitarra slide.
Lazaretto é mais que um disco, claro. É outros dos statements de White. Todo o “circo” à volta do vinil de Lazaretto – o ultra LP – com um holograma em forma de anjo, faixas escondidas debaixo dos rótulos centrais do disco, loops com versões alternativas e lados que tocam de dentro para fora, tudo isto é sintoma de que White, de facto, quer fazer as coisas de forma diferente. Lazaretto acaba, aliás, de bater um recorde de vendas de vinil nos EUA, exactamente por o seu autor ter insistido na reivenção do formato, que tão bem vai com a sua música “antiquada”.
Mas isto são ideias, conceitos, e Jack White deverá ser julgado pela sua música. Por mais que o admiremos, por mais que represente uma figura quase mitológica no rock deste início de século, o resultado do trabalho do símbolo tem de ser mais importante que o símbolo.
E aqui, neste Lazaretto, o que temos é mais um grande disco rock. O problema, se é problema, é que já ouvimos estes 11 temas de White em vários sítios: nos vários discos de White. A verdade é que ele sempre foi um revitalizador, um conservador da memória, mais do que um inventor ou um precursor.
Pouco distingue este disco do anterior, é um facto. Para alguns será decisivo que a obra avance, e para esses White está numa encruzilhada, a explorar os temas que já tocou no passado, ainda que de forma, mais uma vez, impecável. Para outros o fundamental será a coerência e a integridade de quem respeita o rock como poucos; mais importante que o risco será a qualidade.
Confesso estar no meio destes raciocínios. Talvez o próximo disco de Jack White – mais do que algum das suas várias bandas – traga luz sobre o que se seguirá: uma exploração de novos trilhos ou a reverência, ainda que excelente, ao já conhecido.
Aconteça o que acontecer, este Lazaretto já ninguém nos tira. E o rock está, mais uma vez, a salvo.
Essa do “Willy Wonka do rock” está muito bem metida!
bela crítica!