Quem está atento a estas coisas da música saberá que Amabis não é o nome de nenhum obscuro deus egípcio mas sim o apelido do talentoso músico paulista que produziu o novo disco de Rita Redshoes – Life is a Second of Love. Para sublinhar melhor esta ilustre parceria, Redshoes fez questão de convidar Gui Amabis para cantar consigo em “Curve Dance Dreams”, dueto que foi repetido e aclamado – em Lisboa e no Porto – nos concertos de apresentação do mês passado.
Mas antes do flirt musical com a nossa Rita, já Amabis andava há muitos anos nestas lides. Tudo começou em ’98, quando Gui decidiu estudar a fundo Teoria Musical. Em 2002, já com as pestanas suficientemente queimadas pelos anos de estudo, o paulista aplica, por fim, os seus conhecimentos, compondo sofisticadas bandas-sonoras. O passo seguinte dá-o em 2007, estreando-se na arte da produção de discos.
Em 2011, Amabis sai da obscuridade dos bastidores, expondo-se aos holofotes de um primeiro disco a solo. É no terreno do autobiográfico Memórias Luso-Africanas que encontramos um novo elo de ligação com o nosso país: o disco foi muito inspirado pelas histórias que a sua avó materna portuguesa lhe contava. Num certo sentido, é um álbum de continuidade com a sua fase anterior, na medida em que constitui ainda uma espécie de banda-sonora de uma longa-metragem imaginária, um filme de viagens pelas suas memórias mais ancestrais. Para se escudar da exposição que sempre implica o assumir da própria voz – e em coerência com o conceito mestiço do disco -, Amabis só canta em duas das suas canções, deixando as demais a cargo dos seus colaboradores (entre os quais destacamos Céu, a sua belíssima mulher).
Só no disco seguinte, lançado no Brasil em 2012, é que Amabis ganha coragem para “defender as suas músicas, cantando-as integralmente”. O álbum – produzido pelo próprio em colaboração com Regis Damasceno – chama-se Trabalhos Carnívoros e conheceeu edição portuguesa no dia 16 de Junho.
Chegados onde queríamos chegar, dissequemos, por fim, o introspectivo Trabalhos Carnívoros . Encontramos nele uma melancolia contínua, tão bela como hipnótica, que nos enleva como um canto de sereia. O meu conselho é: não tentem resistir. Por mais receio que tenham da sua etérea e intangível tristeza, entreguem-se ao seu doce torpor e desfaleçam nos seus braços dolentes. É esse o saboroso segredo do disco.
Se em Memórias Luso-Africanas pressentíamos a presença do Clube da Esquina, é agora a turma tropicalista que sentimos assomar. É como se Amabis e seus cúmplices tocassem a Tropicália 2 de Caetano e Gil, depurando contudo toda a sua alegria pernambucana, e guardando apenas a mais cristalina tristeza (a beleza, suspeitamos, no seu estado mais puro). A voz quase sussurrada, as guitarras tão psicadélicas como dolentes, a contida bateria, o baixo seguro e circunspecto, as cordas e sopros taciturnos, todos convergem num mesmo efeito: entorpecer-nos com o seu triste langor.
As letras são difíceis de decifrar, de tal forma se escondem nos seus trajes surrealistas. Apesar do seu derradeiro significado nunca nos ser inteiramente revelado, intuímos no seu lastro a presença de dolorosas mágoas pessoais. Sabendo que os pais de Amabis são biólogos, percebemos com mais nitidez o seu intuito: diluir um pouco da dor pessoal no meio das insípidas metáforas biológicas: “trabalhos carnívoros”, “regeneração da pele”, “bem da nossa espécie”, “ser vivo adaptado”, “estômago liso”, são alguns desses orgânicos simbolismos.
Terminada a escalpelização, a nossa conclusão é inequívoca. Ainda não foi desta que Amabis se libertou do espectro das “trilhas sonoras”. Trabalhos Carnívoros é a banda-sonora da nossa infinita solidão.
Tiro – Gui Amabis from Estudio Senhora Olga on Vimeo.