Uma voz cavernosa na noite escura. O blues como transe e maldição.
Em 1959 não havia ainda o luxo dos álbuns propriamente ditos. Moanin’ in the Moonlight não foge à regra, sendo uma colectânea dos singles e lados B que Chester Burnett foi gravando ao longo da década de 50, primeiro em Memphis, mais tarde em Chicago. O que não nos impede de o considerar o seu melhor LP. Porquê? Porque é onde o nosso lobo favorito leva mais longe a sua estética do sujo, do primitivo, do selvagem.
Howlin’ Wolf era já quarentão na altura, tendo sido discípulo do mítico bluesman Charley Patton, mas não há nada de arcaísmo na sua sensibilidade, bem pelo contrário. É vanguardista a sua revisitação do sul profundo, exagerando a sua rudeza, intensificando o seu minimalismo. Para quem duvide da sua modernidade lembremos que Wolf foi dos primeiros a electrificar o blues, ainda nos anos 40. A segunda faixa deste disco, “How Many More Years”, gravada em 1951 em Memphis, é um dos primeiros exemplos históricos de um riff distorcido de guitarra, exercendo uma influência incalculável sobre o rockabilly e o rock no geral.
Metade dos temas de Moaning’ in the Moonlight tem apenas um acorde e, confessamos, são os nossos favoritos. A sua simplicidade é aparente, cuidadosamente construída para induzir o transe e a assombração. É arrepiante a forma como o disco começa, com um cantar dolente de boca fechada, definindo o tom fantasmagórico que atravessa o LP. Entra depois um riff obsessivo da guitarra e, uns segundos mais à frente, uma harmónica hipnótica, tocada pelo próprio Wolf. Quando a sua voz possante e cavernosa chega por fim, dizendo “somebody knocking on my door”, um calafrio percorre-nos a espinha: temos a certeza absoluta que é o diabo que nos está a bater à porta.
Porque em Burnett o blues está sempre ligado ao mal. Quando um homem fica desempregado e não consegue pagar a renda o mal começa a espreitar. Quando um tipo é abandonado ou traído pela mulher que ama os piores pensamentos espreitam. Essa inclinação para o mal está bem expressa nos clássicos “Evil” e “Forty Four”. Não é à toa que os negros devotos repudiavam o blues como a “música do diabo”.
Howlin’ Wolf sentiu este estigma na pele quando a própria mãe, fanática religiosa, o renunciou pelos seus caminhos profanos. Howlin’ nunca conseguiu ultrapassar o sentimento de rejeição. Depois de ter singrado na vida como grande referência do blues de Chicago (a par do seu amigo e rival Muddy Waters), a sua mãe recusou o seu dinheiro, atirando os “dólares do pecado” para uma poça lamacenta. Chester Burnett era um homem grande e forte, um metro e noventa e um e 136 quilos de grandeza e força, mas nesse momento chorou como uma criança pequena. O blues de Howlin’ Wolf não é abstracto, decorre todo ele desta tristeza primordial.
Chester Burnett nunca vendeu muitos discos mas deixou um legado impressionante. Captain Beefheart e Tom Waits são os seus mais evidentes herdeiros. Não é só a voz rouca e profunda que lhe pedem emprestado, é também o seu primitivismo esclarecido, a velha aspereza da música do Mississippi levada até às suas últimas consequências. Wolf plantou também as suas más sementes em Nick Cave, daí a sua ferocidade tribal. Não há como dar a volta. Howlin’ Wolf está vivo. A alma de um lobo nunca morre.